A minha tia tentou tirar-me o meu irmão, mas eu conhecia as verdadeiras motivações dela.
No dia seguinte ao funeral dos meus pais, tornei‑me adulta. Não porque fiz dezoito anos, mas porque alguém tentou roubar-me a única família que me restava. E eu não ia permitir tal coisa.
Quando fiz 18 anos, nunca imaginei que iria enfrentar o capítulo mais doloroso da minha vida: enterrar os meus pais enquanto segurava o meu irmão de seis anos, o Ollie, que ainda acreditava que a mãe e o pai tinham partido “para uma longa viagem”.
Para agravar tudo, o funeral coincidiu com o dia do meu aniversário.
As pessoas sorriam com ar vazio e diziam “Parabéns pelo 18.º aniversário”, como se fosse algo relevante.
Eu não queria bolo nem prendas. Só desejava que o Ollie parasse de perguntar: “Quando é que voltas?”
Ainda vestíamos roupa de funeral quando, ajoelhando‑me junto ao túmulo, sussurrei uma promessa: “Não importa o que aconteça, eu protegê‑lo‑ei. Ninguém te irá tirar de mim.”
Mas nem todos tinham o mesmo plano.
—É o melhor para ele, Trevor —disse a tia Melissa, tentando ser simpática, embora os olhos dela tivessem aquele brilho familiar que eu já aprendia a desconfiar. Deu‑me uma chávena de chocolate quente que eu não queria, sinalizou que me sentasse com ela e com o tio Ray. O funeral tinha sido há uma semana.
O Ollie esteve calado num canto, a brincar com os seus autocolantes de dinossauro, alheio a tudo. A Melissa inclinou‑se para ele:
—Tu és apenas uma criança —disse‑lhe, pousando a mão na minha como se fôssemos aliadas. —Não tens um emprego, ainda vais à escola, e o Ollie precisa de um lar… de uma rotina… de estrutura.
—Um verdadeiro lar —acrescentou o tio Ray, como se tivesse decorado o texto.
Mordi o interior da bochecha até sangrar. Eram as mesmas pessoas que tinham esquecido o aniversário do Ollie durante três anos seguidos e uma vez saíram mais cedo de um jantar de Natal para porem-se a caminho de um spa.
E agora queriam ser os pais dele?
Na manhã seguinte, descobri que tinham avançado com um processo de guarda.
Então tudo fez sentido: não era preocupação. Era estratégia. E algo dentro de mim gritava que eles não queriam o Ollie por amor.
Queriam outra coisa.
E eu ia descobrir o quê.
No dia seguinte à minha matrícula, dirigi‑me aos serviços da faculdade comunitária e desisti oficialmente do curso. O orientador perguntou‑me se tinha a certeza. Não hesitei. Podia regressar à faculdade mais tarde. Mas o Ollie precisava de mim agora.
Arranjei dois empregos a tempo parcial: entregava comida durante o dia e limpava escritórios à noite. Mudámo‑nos para casa — já não tínhamos hipótese financeira — para um pequeno T1 que cheirava a tinta velha e a pizza antiga.
O colchão encostava a uma parede. O futon, à outra.
Mas o Ollie sorria como se estivesse no paraíso.
—Este lugar é pequenino… mas é acolhedor —disse, enrolado num cobertor como um burrito. —Cheira a pizza… e a casa.
Aquilo quase me partiu. Mas também me deu a força de que precisava.
No dia seguinte, apresentei o pedido de tutela legal.
Tudo mudou uma semana depois.
Recebi um telefonema dos Serviços Sociais e corri para casa. Quando a assistente social me entregou o relatório, as minhas mãos adormeceram.
Dizia que tu lhe gritavas… que o maltratavas.
Eu não conseguia respirar. Parecia que todo o ar do mundo tinha sido sugado. O Ollie nunca ouvira falar da minha violência. Nem sequer de uma voz mais alta, exceto quando lia os livros dos dinossauros com um toque dramático.
Mas a Melissa semeou a dúvida.
E a dúvida destrói tudo.
O que eu não esperava era a Sra. Jenkins, a nossa vizinha no fim do corredor. Uma professora reformada do 3.º ano que cuidava do Ollie quando eu trabalhava à noite. Tinha 67 anos, andava com uma bengala e brandia a sua opinião como se fosse uma espada.
Ela entrou no tribunal durante a audiência de emergência, com uma pasta volumosa de papel pardo e as pérolas como armadura.
—Esta jovem —disse, apontando directamente para mim—, está a criar o seu irmão com mais bondade e maturidade do que vi em metade dos pais que ensinei ao longo de 30 anos.
Olhou directamente para o juiz. —E se alguém disser o contrário, ou está a mentir, ou é cego.
O seu testemunho puxou‑nos à tona. O juiz adiou a decisão da guarda e concedeu à Melissa apenas o direito a visitas supervisionadas.
Não foi uma vitória total, mas foi uma tábua de salvação.
Todas as quartas e sábados tinha de deixar o Ollie na casa da Melissa. Era um frio no estômago, mas o tribunal exigia que eu fizesse por me portar bem.
Numa quarta‑feira, cheguei cedo. A casa estava estranhamente silenciosa. A Melissa abriu a porta com aquele sorriso forçado cheio de refinamento.
O Ollie correu para mim, com as bochechas vermelhas e pequenos punhos agarrados ao meu casaco.
—Ela disse que tenho de a chamar de “mãe” ou não comerei sobremesa —sussurrou.
Ajoelhei‑me e afastei‑lhe o cabelo do rosto. —Nunca vais ter de chamar ninguém disso, a não ser à mamã —disse-lhe.
Ele assentiu, mas o lábio tremeu.
Naquela noite, depois de o pôr a dormir, saí para colocar o lixo fora. Ao passar pela casa da Melissa, perto da janela da cozinha, ouvi‑os no viva‑voz.
—Temos de acelerar isto, Ray —disse ela. —Assim que tivermos a guarda, o fundo fiduciário será libertado.
Parei ali mesmo.
Fundo fiduciário?
Eu nem sabia que o Ollie tinha um.
Esperei que acabassem. Corri para casa e achei todos os documentos que consegui. Depois de horas, lá estava: um fundo de 200 000 USD criado pelos nossos pais para a educação e o futuro do Ollie.
A Melissa nunca referira isso.
Mas agora percebia a pressa dela.
Na noite seguinte voltei lá.
Desta vez gravei com o telemóvel.
Ouvi a voz do Ray: —Assim que tivermos o dinheiro, podemos enviá‑lo para um colégio interno ou algo do género. É muito dinheiro.
A Melissa riu, ríspida e cruel: —Eu só quero uma carrinha nova. E talvez aquelas férias no Havai que perdemos no ano passado.
Parecia que o meu coração ia sair pela boca.
Na manhã seguinte enviei a gravação directamente para o meu advogado.
Na audiência final da guarda, a Melissa entrou como se fosse tomar brunch. Usava batom vivo, pérolas e carregava uma lata de bolachas caseiras para o oficial de justiça.
Sorriu para o juiz como se fossem velhos amigos.
Mas quando o meu advogado reproduziu a gravação, o sorriso desapareceu.
—Temos de acelerar isto, Ray… Assim que tivermos a guarda, libertamos o depósito… Vamos mandá‑lo para um colégio interno… Quero uma carrinha nova…
O tribunal silenciou-se.
A juíza, mulher severa de meia‑idade, retirou os óculos e disse de forma categórica: —Tentou manipular este tribunal com falso testemunho e usou uma criança enlutada como activo financeiro.
A Melissa empalideceu. O Ray parecia prestes a vomitar.
Perderam não só a guarda, como foram remetidos aos Serviços Infantis e ao Ministério Público para investigação por fraude.
Naquela tarde, concederam‑me a guarda legal total do Ollie.
A juíza chegou mesmo a ligarmo a um programa de apoio habitacional e qualificou os meus esforços como “excepcionais em circunstâncias de cortar o coração”.
Lá fora, o Ollie agarrou‑me a mão com tanta força que pensei que nunca mais me largaria.
—Vamos para casa agora? —perguntou ele.
Abaixei‑me, sorri e desarrumei-lhe o cabelo. —Sim, amigo. Vamos para casa.
Quando passámos pela Melissa, agora desfeita e pálida, ela nem disse uma palavra.
Nem precisava.
Dois anos passaram.
Eu trabalho em tempo integral e faço cursos online à noite. O Ollie está na 2.º classe; ele já lê melhor do que eu àquela idade e é obcecado por espaço, animais e vilões de desenhos animados.
Ele diz aos professores que eu sou o seu “irmão mais velho e melhor amigo”.
Ainda vivemos num apartamento pequeno, continuamos a discutir se vemos desenhos animados ou programas de ciência, e ainda comemos pizza no chão à sexta‑feira.
Não é perfeito.
Mas é amor. É família. É real.
E quando o Ollie olhou para mim da última vez e sussurrou: “Nunca me deixaste levar”, sorri e disse a verdade:
—Eu nunca o farei.