
O luto de Gaspar era um abismo sem fim, um vazio frio que engolia a luz de cada dia. Desde a morte prematura do pequeno Bernardo, o seu filho, tudo dentro dele parecia ter-se partido. As paredes da casa, antes testemunhas de desenhos a giz e gargalhadas estrondosas, agora guardavam apenas ecos e o pó que se acumulava sobre os brinquedos intocados. Às vezes, Gaspar jurava ouvir passos a correr pelo corredor e o coração acelerava-lhe até se dar conta de que era apenas o vento a assobiar.
“Por que é que não fui eu?” murmurava ele em frente à janela, o olhar perdido no horizonte cinzento.
Alejandra, a sua esposa e madrasta do menino, aproximava-se devagar, com medo de que qualquer palavra o fizesse desabar. Ela abraçava-o por trás, envolvendo-o com ternura, tentando esconder as suas próprias lágrimas. Ela também chorava por Bernardo, que a chamava de “mamã” e a amava com uma doçura incondicional.
“Gaspar, tens de comer alguma coisa,” dizia ela, com a voz embargada, esforçando-se para trazer à tona memórias mais suaves. “Tu lembras-te de como ele adorava as tuas panquecas? Tenta lembrar-te disso.”
Gaspar respirava fundo, desviando o olhar. “Lembro-me. E também me lembro do dia em que o perdi.” O silêncio que se seguia era tão pesado que até o tique-taque do relógio parecia deter-se, incapaz de avançar perante tamanha dor.
Naquele sábado nublado, Gaspar acordou com a determinação sombria de cumprir o seu ritual mensal: visitar o túmulo do seu filho. Vestiu a velha t-shirt azul-marinho que Bernardo dizia ser a sua favorita. “Ficas bem com ela, papá,” a voz do menino ressoava na sua mente. Pegou nos lírios brancos que comprava todos os meses na mesma florista. O vendedor, que o reconhecia, limitou-se a acenar com a cabeça, respeitando o seu silêncio.
No caminho para o cemitério, a paisagem parecia distante, coberta por uma névoa fria. Ele não ouvia o ruído dos carros, apenas a sua própria respiração e o peso dos seus passos. “Mais um mês, meu filho,” pensava, segurando as flores como se segurasse o seu próprio coração.
O portão de ferro gemeu ao abrir-se e um vento frio atingiu-lhe o rosto. Gaspar caminhou até à lápide de mármore claro, onde o nome Bernardo estava gravado com letras firmes e um pequeno desenho de uma estrela por baixo. Ajoelhou-se e depositou os lírios sobre o túmulo, passando os dedos sobre o nome como se quisesse senti-lo vivo.
“Perdoa-me, meu menino. Eu devia ter-te protegido,” sussurrou, e as lágrimas vieram sem resistência. Ali, rodeado pelo silêncio dos mortos, sentia que a sua alma continuava sepultada juntamente com a do seu filho. “Farias oito anos este mês,” murmurou, limpando o rosto. “Lembras-te de quando dizias que querias ser astronauta? Aposto que agora estás a brincar entre as estrelas.”
Pôs-se de pé, ajeitou o casaco e virou as costas à lápide. Era hora de partir, como todos os meses, tentando deixar um pouco da sua dor ali. Mas, ao dar os primeiros passos, um som fê-lo parar. Passos pequenos, leves, muito próximos.
Gaspar voltou-se, e o sangue gelou-lhe nas veias. Um menino vinha a caminhar lentamente na direção da lápide. Tinha o cabelo loiro, a pele clara e o mesmo andar ligeiramente desajeitado de Bernardo.
“Não, não pode ser,” sussurrou, escondendo-se atrás de uma árvore grossa. O seu coração batia tão forte que temeu ser ouvido.
Observou o menino aproximar-se. Quando o viu claramente, o chão pareceu desaparecer sob os seus pés. O menino era idêntico ao seu filho. O mesmo rosto, o mesmo olhar doce, a mesma fragilidade de um pequeno que parecia carregar o peso do mundo.
O menino segurava um pequeno ramo de lírios brancos, as mesmas flores que Gaspar acabara de depositar. Ajoelhou-se em frente à lápide e permaneceu imóvel por um momento antes de começar a chorar. As lágrimas vinham em soluços dolorosos.
“Não consigo lembrar-me de quem sou,” murmurou o menino, com a voz trémula.
O som daquela voz, que parecia vir do passado, fez o coração de Gaspar disparar. O homem permaneceu escondido atrás da árvore, incapaz de mover um músculo, a observar aquela cena com os olhos cheios de lágrimas, sem saber se vivia um sonho, um delírio ou um milagre.
Quando o menino finalmente se levantou, limpou o rosto e ajeitou o ramo de lírios brancos sobre a lápide. Gaspar teve de se apoiar no tronco para não desabar.
O menino começou a afastar-se lentamente pelo caminho. Algo dentro de Gaspar gritava que não podia deixá-lo ir. Se é ele, se é mesmo o meu filho. O pensamento atingiu-o com a força de um trovão.
Sem pensar, começou a segui-lo à distância. O menino caminhava devagar, como se carregasse um peso enorme. Ao sair do portão de ferro enferrujado, o ranger do metal soou demasiado alto.
O ar estava frio e húmido. “Bernardo,” sussurrou Gaspar, quase sem voz.
O menino atravessou a rua e virou numa esquina estreita, desaparecendo por um momento. Gaspar apressou o passo, guiado por uma força que não compreendia. Ao virar a esquina, viu-o mais à frente, a entrar num beco escuro e quase invisível. Um calafrio percorreu-lhe a espinha.
“Bernardo, filho, sou eu. Espera,” gritou, incapaz de conter o desespero.
Por um instante, o menino parou, virou o rosto e o olhar que lhe lançou foi tão intenso que o mundo pareceu girar. Os olhos do menino estavam muito abertos, cheios de medo.
“Não tenhas medo, sou o papá,” disse Gaspar, com a voz trémula.
Mas o menino recuou, respirando rapidamente, como um animal encurralado. O ramo de lírios caiu-lhe das mãos. Em seguida, virou-se e fugiu a correr.
Gaspar ficou paralisado, atónito. “Era ele. Sei que era ele,” repetia para si mesmo, com a voz quebrada. A chuva fina começou a cair. Voltou para casa, cambaleante, o corpo presente, mas a alma perdida.
Gaspar entrou em casa como um homem que viu um fantasma. Alejandra, que dobrava a roupa na sala, levantou-se assustada. “Gaspar, o que é que se passou? O que é que te aconteceu?”
“Eu vi-o, Alejandra. Vi o Bernardo.”
Ele sentou-se, apoiando a cabeça nas mãos. Começou a contar-lhe tudo, desde o cemitério até ao beco escuro. As palavras saíam com dor, mas também com uma esperança quase infantil.
Alejandra ouviu-o sem interromper, os olhos fixos nele. “Amor, talvez fosse alguém parecido, uma coincidência, percebes? Às vezes a mente engana-nos quando sofremos demasiado.”
Mas Gaspar negou com a cabeça, com firmeza. “Não. Olhei-o nos olhos. Era o meu filho. Conheço o rosto do meu menino, Alejandra.”
“Eu acredito em ti. Só estou a tentar entender. Talvez devêssemos voltar amanhã, procurar o menino.”
O homem sentiu-se aliviado. “De verdade acreditas em mim?”
“Sim. Se há uma mínima possibilidade, iremos atrás dela.”
Alejandra abraçou-o com força. “Não vais passar por isto sozinho.” Pela primeira vez em meses, Gaspar respirou fundo sem sentir a culpa que o sufocava.
Na manhã seguinte, Gaspar já estava de pé antes do sol nascer. Não conseguiu dormir, atormentado pelo rosto do menino e pelo som dos seus passos. Alejandra apareceu, vestindo uma t-shirt azul-marinho igual à dele, como uma armadura emocional.
“Vamos com calma,” disse ela. “Se for um menino perdido, pode assustar-se outra vez.”
Naquela tarde, Gaspar encontrou-o sentado num banco de madeira descascada. O menino estava encolhido, os pés descalços, com o ramo de lírios já murchos nas mãos.
“Olá,” disse Gaspar, suavemente.
O menino levantou o olhar. “És o homem da praça.”
Gaspar ajoelhou-se em frente a ele. “Sim, sou o homem da praça, e tu és o meu filho.”
O menino ficou em silêncio, os olhos cheios de lágrimas. “Sinto como se te conhecesse, mas não me lembro de nada.”
“Não importa, filho meu. O que importa é que eu me lembro de ti. Lembro-me de quando te escondias atrás do sofá para me assustar, de quando me pedias para deixar a luz acesa, de como me chamavas papá.” As palavras saíam com um nó na garganta.
“Não sei por que tive medo dela. Só senti que tinha de correr,” confessou o menino.
“Dela quem?”
“Não sei, só me lembro que me bati na cabeça e quando acordei estava na rua. Só sonho com alguém que me chama filho.”
Gaspar soube com uma certeza que lhe ardia na alma: aquele era Bernardo. “Vieste comigo ao hospital? Só para fazermos um exame, para confirmar o que o meu coração já sabe.”
O menino limpou as lágrimas e assentiu. “Confio em ti.”
No hospital, o exame foi rápido, mas a espera, eterna. Gaspar contou-lhe histórias da sua infância, rindo e chorando. Finalmente, o médico entrou.
“A prova confirma o vínculo biológico. O menino é, efetivamente, seu filho.”
Gaspar desabou, abraçando o menino com força. “Sempre o soube! Sempre o soube!”
Mas o momento durou pouco. Alejandra irrompeu pela porta, o rosto tenso, os olhos cheios de lágrimas. “Gaspar, o que é que fizeste? Como é que soubeste que estávamos aqui?”
“A prova confirmou. É o Bernardo.”
A mulher empalideceu. “Não, não pode ser! Isso é um erro!”
“Então diz-me, Alejandra, por que é que sentiu medo ao ver-te? Por que é que o meu filho se encheu de pânico?”
Alejandra permaneceu em silêncio, o rosto paralisado. Então, a sua negação quebrou-se, e ela começou a murmurar: “Não, não devia ser assim. Eu tentei livrar-me dele. Atirei-o de uma pequena ponte,” o grito saiu como um rasgo. “Tu só tinhas olhos para ele. Pensei que estava morto. Deixei-o lá.”
O tempo parou. “Deus meu, Alejandra, o que é que fizeste?”
“Amava-te, Gaspar, mas ele tirou-me tudo! Nunca olhaste para mim, só para ele!” Ela estava perdida no seu próprio tormento.
De repente, Alejandra enfiou a mão na sua mala e tirou uma arma pequena, cujo cano prateado brilhou sob a luz fria do hospital. O som metálico encheu o ar como um trovão.
“Não posso ver-vos juntos! Não posso!” gritou, o dedo a tremer no gatilho.
Gaspar deu um passo em frente, lento, decidido, segurando o filho com força. “Alejandra, não tens de fazer isto. Eu amei-te, mas isto não vai apagar o que aconteceu.”
Ela negava com a cabeça, as lágrimas a escorrerem. “Não entende, Gaspar. Eu perdi tudo.”
“Pára, por favor!”
O som metálico do cão a armar fez o sangue gelar. Por um segundo, o mundo parou. Então, um grito agudo quebrou o ar, cheio de valor e dor.
“Não magoes o meu papá!”
Bernardo atirou-se com todas as suas forças sobre Alejandra. O impacto foi repentino e forte. A arma caiu no chão e disparou contra a parede.
Gaspar correu para eles. “Bernardo! Estás bem?”
O menino tremia, mas estava vivo. “Papai, só queria proteger-te.”
Alejandra permaneceu no chão, o rosto coberto de lágrimas. “Deus meu, o que é que fiz?”
Guardas e enfermeiros irromperam pela porta. Os polícias algemaram Alejandra, que apenas levantou as mãos.
“Não queria, juro que não queria,” balbuciava.
Gaspar observou-a em silêncio, abraçando o filho. O seu olhar cruzou-se com o dela, e, por um breve instante, ele viu não raiva, mas arrependimento. Os polícias levaram-na.
Gaspar ajoelhou-se no chão com o filho nos braços. “Acabou, meu filho. Acabou.”
Bernardo levantou o olhar, as lágrimas misturadas com um sorriso tímido. “Vamos para casa agora, não vamos, papá?”
Gaspar apertou-o com força. “Sim, meu anjo, vamos para casa.”
Enquanto saíam do hospital, o sol começava a romper no horizonte. Pela primeira vez em muito tempo, Gaspar sentiu algo que não sentia há muito tempo: paz. O pesadelo terminava. Mas o amor entre pai e filho renascia, mais forte do que nunca, no coração que por pouco fora destruído. A vida recomeçava, não como um sonho, mas como um milagre.