
— Se eu cantar bem, dão-me um prato de comida? — perguntou a menina de rua num concurso de talentos.
A pequena Lucía tinha apenas oito anos, mas já conhecia o peso do medo e da solidão. A sua roupa estava suja, rasgada, e os seus pés descalços exibiam feridas abertas. O seu rosto, embora bonito e delicado, refletia desespero e insegurança.
Desde que perdeu os pais, muito jovem, a menina sobrevivia nas ruas. Aprendeu a dormir no chão, a partilhar o pouco que tinha com desconhecidos e a cantar para conseguir algumas moedas que lhe garantissem o jantar. Mas, apesar da dor, não estava completamente sozinha. Ao seu lado, levava o seu inseparável companheiro: uma guitarra velha, com o corpo rachado e as cordas oxidadas. Era o maior tesouro da menina, a única coisa que lhe restava do tempo em que ainda tinha um lar.
Com aquela guitarra, Lucía costumava cantar nos passeios, nas praças e nas feiras, trocando canções por umas moedas ou um pedaço de pão. Só que, desta vez, o palco era outro: muito maior, muito mais aterrorizante. Estava prestes a apresentar-se no concurso de talentos mais importante do país, em frente a uma enorme audiência, com câmaras de televisão, jurados exigentes e milhões de pessoas a assistir das suas casas.
O coração da menina batia descompassado.
— Sou eu — murmurou, quase sem voz, ao produtor do programa.
— É a próxima — disse o homem, sorrindo apressado.
Por um instante, o coração da menina de rua pareceu parar. O som do público, o zumbido das luzes, o movimento das câmaras — tudo desapareceu. Era como se o mundo se tivesse calado, deixando apenas o som acelerado do seu próprio coração.
Apertou a guitarra contra o peito, tentando manter-se firme, mas antes que o seu nome fosse anunciado, a voz animada do apresentador soou pelos altifalantes: “E agora, vamos a uma breve pausa. Em seguida, regressamos com a próxima apresentação que, segundo me informaram, será impactante.”
Lucía soltou o ar num suspiro de alívio. Correu para a casa de banho. Uma vez lá dentro, encerrou-se e apoiou-se no lavatório, olhando o seu próprio reflexo no espelho.
— Vá, Lucía, já passaste por coisas piores — disse para si mesma, tentando convencer-se. — Cantavas na rua para ninguém, e mesmo assim não desistias. Agora, só tens que cantar para mais pessoas. Só isso.
Lavou o rosto com água fria, respirou fundo e tentou sorrir, embora o sorriso fosse trémulo e tímido.
— Só canta. Tu consegues — disse, determinada.
A menina ajeitou o cabelo, atou o cordão desgastado da sua sandália, pegou na guitarra e saiu da casa de banho.
Mal pôs o pé no corredor, ouviu o produtor gritar apressado: “Acabou o descanso, todos para os seus lugares!”
Lucía sentiu um arrepio percorrer a sua espinha, mas respirou fundo e caminhou para o palco.
— Senhoras e senhores — anunciou o apresentador, com entusiasmo. — A próxima participante é uma nova voz que promete emocionar o país inteiro. Ela vem do absoluto nada e está aqui pela oportunidade de conseguir… tudo! Com vocês, Lucía!
As cortinas começaram a abrir-se. Por um instante, o silêncio apoderou-se do público. Todos observavam, curiosos, aquela menina frágil, com roupa simples e uma guitarra remendada. Lucía deu uns passos hesitantes para o centro do palco. O suor escorria-lhe pela testa, a brilhar sob as luzes intensas. Olhou para a multidão, depois para a sua guitarra, e respirou fundo. Fechou os olhos e tocou o primeiro acorde.
O som das cordas velhas ressoou suave, puro, mas antes que pudesse cantar a primeira palavra, algo inesperado aconteceu.
De repente, uma corda foi puxada dos bastidores, e um balde de tinta espessa caiu do alto, derramando-se por completo sobre a menina. A tinta escorreu pelo seu cabelo, rosto e roupa, manchando tudo, até mesmo a guitarra.
Por um momento, o silêncio voltou, e depois, a risada cruel de parte do público espalhou-se pelo local.
Lucía ficou paralisada. Os olhos encheram-se de lágrimas, as mãos tremiam-lhe. O seu coração gritava-lhe para fugir, para desaparecer, para nunca mais voltar a cantar.
As outras crianças que participavam no programa observavam a cena dos bastidores, e muitas delas não conseguiram conter o riso.
— Hahaha, pensaste mesmo que íamos deixar uma mendiga cantar aqui? — troçou uma delas, com desprezo.
Lucía baixou o olhar e viu a guitarra coberta de tinta. Aquele mesmo instrumento, que a tinha acompanhado nas noites frias, parecia agora tão sujo e humilhado quanto ela.
Dias antes, Lucía tinha encontrado o seu único amigo no mundo, Juanito, o engraxador de sapatos.
— Olhe só quem veio iluminar o meu posto de trabalho! — brincou Juanito, com um sorriso de orelha a orelha. — Pensei que tinhas virado cantora internacional e te tinhas esquecido de mim!
— Se eu fosse uma cantora de verdade, tu serias o meu guarda-costas, Juanito — disse Lucía, com um olhar divertido.
Juanito olhou-a, mais sério.
— Tens uma cara estranha. Aconteceu alguma coisa?
— É que aconteceu algo meio maluco — começou Lucía. — Ontem, estava a cantar e um casal parou para me ouvir. Disseram que a minha voz era bonita.
— A sério? Isso é demais, Lucía!
— Disseram que trabalhavam com música, que ajudavam crianças a cantar num concurso. E deram-me isto. — Ela mostrou o cartão amarrotado.
Juanito pegou no cartão e, após ler a morada, abriu os olhos com assombro.
— Espera um momento, isto eu conheço! É um programa de televisão super famoso, aquele onde os meninos mostram os seus talentos. O programa chama-se A Voz do México, e querem que tu cantes! Caramba, Lucía, isto é a sério!
Mas a menina não parecia tão entusiasmada quanto o amigo.
— Foi o que disseram, mas não sei. Acho que só disseram isso para me animar. Ninguém vai querer ver uma menina como eu a cantar.
Juanito ficou de boca aberta.
— Que disparate é esse, Lucía? Claro que vais! Tu és excelente. Tens talento, menina. Se tens um talento, não o podes deitar no lixo.
— Mas tu também tens talento, Juanito — disse Lucía, com um tom suave.
— Eu sei, boba. O meu talento é engraxar sapatos, e é isso que faço sem reclamar. Se sabes cantar, então canta, tonta!
Lucía olhou-o, comovida.
— Tens razão — respondeu, sorrindo. — Vou procurar esse casal do concurso. Se pensar demais, acabo por desistir.
E foi exatamente isso que a pequena fez. Lucía ajustou a velha guitarra às costas e caminhou pela avenida com o coração a bater forte. Finalmente, chegou ao edifício gigantesco e moderno: A Voz do México.
Mas, antes de poder entrar, uma mulher uniformizada barrou-lhe a passagem.
— Ei, menina, isto não é um abrigo! — disse, com a voz áspera. — Só entram empregados ou participantes. Vá pedir esmola para outro lugar.
— Mas eu não vim pedir esmola, senhora — explicou Lucía, mostrando o cartão. — Disseram-me para vir aqui.
A mulher pegou no papel entre dois dedos, com nojo.
— Quem te deu isto?
— Um casal. Disseram que trabalham com o concurso.
— Ah, claro! Achas mesmo que gente como tu tem algo a ver com um lugar como este? — Ela empurrou a menina com força.
Lucía perdeu o equilíbrio e caiu no passeio. A guitarra bateu no chão, soltando um som seco, como um grito abafado.
— O que é que se passa aqui? — perguntou uma voz grave e firme.
Frente a ela, estava um homem alto, elegante, o dono do concurso: o senhor Martín.
— Fui eu que criei este concurso — disse ele, com um sorriso pequeno. — E tu, o que andavas a fazer a tentar entrar aqui?
— Eu… eu só queria cantar — explicou Lucía. — Eles deram-me um cartão e disseram-me para vir aqui. Juro que não estou a mentir.
Martín pegou no cartão e observou-o com atenção.
— Entendo. — Olhou para Lucía, suja e assustada. — Vem, vamos entrar.
Lá dentro, Lucía descobriu um mundo de luxo e beleza. Mas no quarto, as outras meninas a humilharam. Amanda, a líder, escondeu-lhe o pijama e a mandou dormir no chão, num canto.
— Não dormes no chão todos os dias? — provocou, com um tom cruel. — Já devias estar acostumada.
Lucía não respondeu, mas recusou-se a chorar. No dia seguinte, Martín levou-as a uma loja de vestidos caros.
— Lucía, não será preciso — disse-lhe Martín, com frieza, quando ela pediu para experimentar alguma roupa. — Apresente-se com a sua própria roupa, assim como está. Vai comover os jurados e o público. A toda a gente adora ver gente pobre e suja na televisão.
As palavras caíram sobre Lucía como pedras. O seu rosto ardeu de vergonha.
Martín continuou o seu jogo de crueldade. No dia do ensaio, cortou o tempo de Lucía, deixando-a sem testar o som.
— Tenho a certeza de que vai sair-se muito bem em direto, Lucía. Confia no teu dom?
— Confio — respondeu a menina, com firmeza, olhando-o nos olhos.
E assim, chegou o grande dia. No meio do frenesim dos bastidores, Martín sussurrava com Amanda e as outras meninas.
— Entenderam bem? É simples, rápido e vai fazer o público rir.
Lá em cima, escondido, estava o balde de tinta.
Lucía entrou no palco, mas a corda foi puxada, e a tinta caiu. As gargalhadas tomaram conta do auditório.
— Pensaste mesmo que íamos deixar uma mendiga cantar aqui? — gritou Amanda.
Lucía ficou imóvel. Mas, de repente, uma força veio dos seus pés. Juanito deve estar a ver isto agora, e matar-me-ia se visse que eu fujo de novo.
Ela respirou fundo. O medo deu lugar a algo muito maior. Pedro e Lilian, o casal que a tinha descoberto, levantaram-se, horrorizados. Lilian cobriu-a com o seu casaco.
— Saimos daqui para te limpar e cuidar de ti — disse Lilian, com a voz embargada.
Mas Lucía levantou o olhar e declarou em voz alta:
— Podem voltar para os vossos lugares! Eu vim para cantar, e é isso que vou fazer! Suja de tinta ou não, eu vou cantar!
Pedro e Lilian regressaram aos seus lugares, com os olhos cheios de lágrimas de orgulho. Lucía pegou na guitarra ainda a pingar tinta.
— Um dia mais e uma canção mais, companheira — sussurrou.
E então, a menina começou a cantar. A sua voz era pura, clara, poderosa. Um silêncio absoluto apoderou-se do auditório. A voz infantil, mas cheia de dor e verdade, ressoava em todos os corações.
Quando Lucía terminou, o silêncio durou alguns segundos, longos, profundos, quase sagrados. E então, o mundo explodiu em aplausos. O público levantou-se a gritar, a aplaudir, a ovacionar a pequena cantora das ruas.
Nos bares, nas casas, as pessoas choravam em frente à televisão. Juanito, a ver da vitrina poeirenta de um bar, gritou tão alto que chamou a atenção de todos na rua.
— Eu sabia! Eu disse que ela ia arrebentar! Essa é a minha amiga! Eu sou o melhor amigo de uma estrela da música!
Mas, de volta ao auditório, Pedro e Lilian levantaram-se, os olhos cheios de lágrimas, com uma mistura de assombro e reconhecimento.
— Onde aprendeste essa canção? — perguntaram, quase em uníssono.
Lucía, coberta de tinta, olhou para eles, confusa.
— Não me lembro muito bem. É como se ma tivessem cantado tantas vezes que nunca a esqueci. Escolhi esta canção porque me faz sentir algo parecido com o calor do lar.
Pedro levou a mão à boca, incrédulo. Lilian chorava.
— Lucía, o teu nome não é só igual ao da nossa filha… é muito mais do que isso.
— Como assim? — perguntou a menina, inocente.
— Lucía, eu e o Pedro tivemos uma filha linda — disse Lilian, com a voz embargada. — Cantávamos-lhe essa canção todos os dias. Era a única que a acalmava quando chorava. Mas um dia, levaram-na. E nunca mais a encontrámos.
O silêncio apoderou-se do local.
— Somos nós, Lucía — disse Lilian, com lágrimas a correr pelo rosto. — Essa canção… nós cantávamos-ta.
A guitarra escorregou das mãos da menina e caiu no chão. Olhou para Pedro e Lilian, com a boca entreaberta.
— Vocês… vocês são os meus pais?
O silêncio foi absoluto. Pedro e Lilian correram para o centro do palco e abraçaram Lucía com toda a força. Foi um abraço carregado de saudade, de dor e de reencontro. Não se importaram com a tinta; deixaram que os sujasse, como se quisessem partilhar com a filha cada marca, cada ferida.
— Obrigada, meu Deus! — exclamou Pedro. — Pensei que nunca mais te voltaria a ver desde o dia em que te perdemos.
Martín, o dono do concurso, subiu à sua própria mesa, gritando, completamente fora de si:
— O que é isto? Isto não é um programa de caridade! Essa mendiga está desclassificada!
O público reagiu. Gritos de indignação e “Fora, Martín!” ecoaram pelo salão. Pedro e Lilian levaram Lucía para fora do palco, a abraçá-la.
— Não importa — disse Lucía, com os olhos cheios de luz. — Eu já sou uma vencedora, porque vos encontrei.
Aquele não era o final, era o começo. Lucía tornou-se a “menina prodígio” mais famosa do país. A sua velha guitarra acompanhava-a em cada palco, o símbolo da força que a sustentou.
E Juanito, o irmão da rua, foi adotado por Pedro e Lilian, ganhando o lar que sempre sonhara. Agora, trabalhavam todos juntos, felizes, formando a família que o destino havia separado, mas que o amor tinha decidido reunir.
Anos depois, Martín foi preso por fraude e manipulação. A sua empresa desmoronou.
Lucía, por sua vez, continuou a cantar. Aquela voz que um dia foi silenciada pela dor enchia agora o mundo de esperança. Viviana era a prova viva de que, mesmo quando o mundo te vira as costas, a fé, o amor e a coragem podem mudar qualquer destino.