Ele sonhava com uma noiva delicada, de vestido leve e voz suave — mas, no dia marcado, quem surgiu na praça foi uma mulher gigante e musculosa, reivindicando sua mão sem pedir permissão.

Jasper Wild acordou certo de duas coisas: que pediria a mão de Josephine Tate antes do pôr do sol e que, depois disso, a vida entraria num trilho seguro. Três horas depois, no meio da praça poeirenta, uma mulher que ele nunca tinha visto ergueu a voz e anunciou, para quem quisesse ouvir, que estava ali para reivindicar a mão dele em casamento. Não pedir — reivindicar. Como se ele fosse boi marcado em leilão.

A mulher tinha quase um metro e oitenta, ombros largos, braços de quem sabe partir poste de cerca. E disse o nome dele inteiro — inclusive o “Thomas”, que só a mãe, morta há anos, usava. Quando sorriu, não houve ameaça. Houve certeza. E uma sensação incômoda de que sabia algo sobre ele que ele havia esquecido.

O anel de prata, martelado por Jasper a partir da corrente do relógio do avô, escorregou de seus dedos e caiu no pó com um tilintar seco. A desconhecida não avançou. Abriu, com calma, um papel amarelado, leu em voz limpa: “Jasper Thomas Wild promete casar com Leona Bishop quando crescerem. Assinado em sangue. Testemunhas: o riacho atrás do moinho. Verão de 1854.”

A lembrança veio aos solavancos: um verão antigo, o tronco do velho carvalho, o canivete cortando leve o polegar, uma menina de cabelo escuro e olhar teimoso. Criança. Menor. Mas não era outra pessoa; era ela. Leona Bishop. Josephine, pálida, apertou a bolsinha e se afastou sem dizer palavra. O plano de vida de Jasper, tão arrumado horas antes, ficou bamboleando como cerca mal chumbada.

— Isso foi brincadeira de criança — ele conseguiu dizer. — Promessa de sangue não vale em tribunal.

— Não vim atrás de tribunal — respondeu Leona, dobrando o papel com cuidado e guardando-o na sacola de couro. — Vim atrás do homem que disse que honra não tem prazo.

Antes que ele respondesse, três cavaleiros apareceram vindo do calor trêmulo do horizonte: os irmãos Morrison. Carl, o mais velho, desmontou com o andar insolente de quem resolve problema na pancada. Chegou perto demais de Leona, mão estendida para agarrar-lhe o braço. Em um movimento seco, ela apanhou o pulso dele, torceu, e o homem ajoelhou no pó, boca torta de dor. Os outros dois levaram a mão ao coldre; Leona deslizou um passo, posicionando-se entre eles e Jasper, a palma pousada no cabo de uma faca com naturalidade de quem conhece o peso do aço.

— Montem e sumam — disse. — Antes que isso piore.

Não era bravata. Os Morrison perceberam. Recuaram cuspindo raiva e promessas vazias. Quando a poeira assentou, Jasper ainda sentia o cheiro de couro e mato que vinha dela. E algo mais difícil de nomear: um chamado antigo, do tempo em que coragem não era palavra grande demais.

À tarde, Jasper foi ao riacho atrás do moinho. O carvalho permanecia de pé, cicatrizes no tronco como caligrafia de outro tempo. Leona estava sentada num tronco caído, vestido simples castanho, cabelo solto. Não parecia menor ali. Parecia certa.

— Lembro de pedaços — ele disse, sentando-se a uma distância respeitosa. — Mas é como tentar ver através de neblina. Por que sua família sumiu?

— Dívida com gente errada — respondeu. — A terra dos Bishop tem água desde o tempo do meu avô. Papel não vale muito quando você não pode pagar advogado. Trocamos a segurança da roça por anos de estrada. Meus pais morreram de febre no Colorado. Eu juntei força e dinheiro e voltei para pegar de volta o que levaram.

— Os Morrison trabalham para quem comprou sua terra pela metade do preço — concluiu Jasper.

— Samuel Morrison. Tio daqueles três. Comprou por mixaria quando meu pai não conseguiu pagar. O “negócio” foi ameaça e assinatura arrancada.

Jasper olhou o curso do riacho, tentando acompanhar a água como se ali estivessem as respostas. A voz dela baixou:

— Não voltei só pela terra. Voltei para ver se aquele menino que cortou o dedo e disse que palavra é palavra ainda existe.

O som de cascos respondeu por ele. Josephine surgiu montada, serena, com traje de montar azul-escuro. Desceu de lado com elegância, mas a voz vinha firme.

— Pensei que encontraria vocês aqui. — Olhou de Jasper para Leona. — Passei a tarde pensando. Jasper, eu gostava do que você representava: segurança. Mas hoje entendi que não quero segurança que empalha a alma. Quero amor que faz gente mexer de lugar. A pergunta, senhorita Bishop, é: o que pretende fazer com ele depois de “reivindicar”?

Jasper abriu a boca, mas não falaria. O chão tremeu de novo. Uma dúzia de cavaleiros entrou no clareira. À frente, Samuel Morrison, barba com fios de prata, olhos frios.

— Leona Bishop — anunciou. — Minha paciência com seu barulho acabou. Esse riacho corre nas minhas terras.

— Corre nas terras Bishop há trinta anos — Leona retrucou.

Samuel riu curto:

— Seu pai vendeu. Tenho papéis.

— Papéis assinados sob coação não resistem — disse Josephine, sem tremer. — Meu pai é banqueiro. Sei do que falo.

Jasper deu um passo e se alinhou ao lado das duas.

— E eu sei que lado escolho.

Houve um murmúrio entre os pistoleiros. Samuel fechou a cara:

— Menino, você não sabe em que se meteu.

— Sei. Em ser o homem que eu devia ter sido. — Ele ergueu o queixo. — Se puxar a arma, não sai inteiro.

Samuel baixou a mão, não por medo, mas por cálculo. Leona então abriu a sacola e tirou um maço de papéis.

— Meu pai guardou cópias. E cartas suas — apontou — em que exige dinheiro e promete violência. Reconhece a letra?

Alguns homens de Samuel arredaram o cavalo, desconfortáveis. Josephine completou:

— Meu pai testemunhou as transações originais. Se o senhor acha que a justiça do território vai fechar os olhos, arrisque.

Cinco homens foram embora sem olhar para trás. Ficaram Samuel e os sobrinhos. O controle dele rachou, mas o dedo ainda roçava o coldre.

Jasper avançou um passo, o coração batendo na garganta:

— O assunto acabou. Ou o senhor entrega o que tomou, ou vai descobrir que promessa de menino também vira espinha de homem.

Samuel sustentou o olhar de Jasper por um longo instante. Depois cuspiu no chão.

— Isso não terminou.

— Terminou no dia em que você decidiu que ameaça é contrato — disse Leona, calma. — Agora vai até a cidade. Abra o cofre. Amanhã, diante do juiz e do pastor, traz o título original. E pede desculpa à memória do meu pai.

Samuel recolheu as rédeas com um tranco, girou o cavalo e partiu levando os sobrinhos, derrotado pelo vazio ao redor.

Os três ficaram ouvindo o riacho. O dia escurecia em azul.

— E nós? — Josephine quebrou o silêncio. — O que fazemos com nós?

Jasper respirou fundo.

— Eu cresci achando que “vida certa” era trilho reto. Hoje descobri que é ponte: a gente cruza tremendo, mas chega. Josephine, eu te quero bem demais para te oferecer uma casa sem verdade. Você merece alguém cuja alma se inclina para você como a minha se inclinou para… — procurou as palavras e achou o simples: — para ela.

Josephine sustentou o olhar dele. Não havia humilhação, havia luto e lucidez.

— Então é agora que eu escolho por mim — disse. — Meu pai vai chiar, mas vai entender. — Virou-se para Leona. — Cuide dele. Ele é bom. Só precisava de alguém que não o deixasse fugir de si mesmo.

— E eu precisava de alguém que me lembrasse do que dá trabalho e vale a pena — Leona respondeu.

Josephine montou, ajeitou a saia e sorriu com uma ponta de travessura que Jasper não conhecia.

— Devo confessar: sempre detestei o parasol. — Piscou. — Até breve, Jasper. Serei testemunha no tribunal. E, quem sabe, madrinha de casamento.

Quando partiu, não havia mais nó no peito de Jasper. Havia espaço. Ele e Leona caminharam ao longo do riacho, dedos quase encostando, sem pressa.

— Não vim para te salvar — disse ela. — Vim para te lembrar.

— Conseguiu — ele respondeu. — E eu não vou mais esquecer.

Na manhã seguinte, a cidade se encheu. Samuel, pálido, tirou do cofre o título original do avô de Leona. O juiz carimbou, o pastor rezou uma bênção curta — “que a justiça feita na terra espelhe a do céu” —, Josephine assinou como testemunha com uma letra firme que arrancou um suspiro de orgulho do pai.

No fim da tarde, Jasper e Leona voltaram ao carvalho. O corte que ele fizera no polegar aos oito anos agora era só uma cicatriz pálida. Ele tirou do bolso o anel que caíra no pó, polido de novo.

— Não prometo vida fácil — disse, voz baixa. — Prometo cerca bem batida, água partilhada, palavra cumprida.

Leona pegou a mão dele, virou a palma para cima, leu as marcas como quem lê mapa.

— Eu prometo empurrar quando você quiser fugir. E segurar quando você quiser cair.

Ele riu, simples, do tipo de riso que não usava há anos.

— Casa comigo, Leona Bishop?

— Casa, Jasper Thomas Wild.

O vento levantou cheiro de capim e água. Não houve fogos, nem música. Houve apenas duas pessoas em pé onde um dia duas crianças cortaram o dedo e juraram com a seriedade dos oito anos. Agora, adultos, repetiam a promessa — não porque o papel mandava, mas porque, de tudo o que a terra pode dar, a coisa mais rara continua sendo a mesma: um coração que não volta atrás.

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