Serra do Roncador, 1869 — Os Irmãos Morvan e o Líquido Proibido Que Assustou os Viajantes

Em 1869, a Serra do Roncador não era apenas uma formação geológica que cortava o Brasil central entre os estados de Goiás e Mato Grosso. Era uma fronteira psíquica, uma cicatriz na terra que separava o conhecido civilizado do desconhecido brutal, uma linha que poucos ousavam cruzar sem guia, sem um revólver na cintura ou sem uma necessidade extrema e desesperada. Os relatos sobre essa região eram escassos e contraditórios, sussurros carregados de medo que viajavam com o vento seco do planalto. Alguns falavam de riquezas minerais abundantes, veios de ouro e diamantes esperando para serem descobertos. Outros, de tribos hostis, de feras espreitando na escuridão, de uma malevolência primordial que emanava da própria terra. Mas todos concordavam em um ponto sinistro: quem se aventurava por aquelas paragens precisava de abrigo seguro e vigilância redobrada antes do cair da noite, quando as sombras alongavam-se e os segredos da serra saíam para caçar.

A região, marcada por formações rochosas escarpadas, como dentes de um gigante fossilizado, e vales profundos, onde a luz do sol parecia morrer antes de chegar ao chão, permanecia amplamente inexplorada, mesmo após quase 350 anos de colonização portuguesa. As poucas expedições oficiais que se aventuraram além dos limites conhecidos retornaram com mapas incompletos, repletos de marcações de “Terra Sem Lei”, e relatos de dificuldades extremas, de fome, doença e desorientação. A topografia irregular, com desfiladeiros abruptos que engoliam o som e a esperança, e cavernas naturais formadas pela erosão ao longo de milênios, criavam um labirinto natural e sombrio, um ventre da terra onde muitos viajantes simplesmente desapareciam, seus rastros apagados como se nunca tivessem existido.

Conforme registros da época, as condições meteorológicas na serra eram notoriamente imprevisíveis, como o humor de uma entidade maligna. Céu limpo e azul podia transformar-se em tempestade violenta em questão de minutos, com raios que partiam as árvores e trovões que faziam as pedras tremerem. E, pior ainda, neblinas densas, frias, frequentemente reduziam a visibilidade a poucos metros, um véu branco e úmido que desorientava até os guias mais experientes, forçando-os a confiar em instintos que a razão não podia explicar. Foi nesse cenário de isolamento, perigo e medo profundo que surgiu a Hospedaria dos Irmãos Morvan.

O estabelecimento ficava a aproximadamente 70 km da vila mais próxima, em um vale estreito, por onde passava a única trilha, precária e traiçoeira, que ligava o leste ao oeste da serra, um gargalo vital para o trânsito. Segundo registros da época, tratava-se de uma construção rústica, mas solidamente erguida, de madeira escura e pedra bruta, com cinco quartos pequenos para viajantes, uma área comum para refeições onde as vozes ecoavam friamente, e um pequeno celeiro nos fundos. No registro municipal de Barra do Garças, datado de 1872, consta que os proprietários eram dois irmãos, Augusto e Teodoro Morvan.

A hospedaria ficava estrategicamente posicionada ao lado de um pequeno riacho, afluente do temido Rio das Mortes, que garantia abastecimento constante de água fresca e cristalina. A paisagem ao redor era simultaneamente bela e ameaçadora: ao norte, uma encosta íngreme coberta por vegetação densa criava uma barreira natural, uma parede de escuridão e sussurros. Ao sul, o vale se abria para uma vista impressionante da planície distante, visível apenas nos dias mais claros, um vislumbre fugaz de liberdade que rapidamente se fechava. Os viajantes que ali chegavam, geralmente exaustos após horas ou dias de caminhada brutal em terreno acidentado, viam a hospedaria como um oásis de civilização, um porto seguro forjado em madeira, em meio à wilderness implacável, e essa sensação de alívio era a primeira e mais eficaz armadilha dos Morvan.

Uma característica notável da construção, mencionada em diversos relatos de viajantes que conseguiram escapar, era a ausência quase completa de janelas na face norte do edifício, voltada para a encosta da montanha. Essa parede era uma muralha cega, escura e impenetrável, que parecia absorver a luz e o som, criando uma sensação constante de que algo estava escondido, algo que não suportava ser exposto.

De acordo com o que se sabe, os Morvan teriam chegado à região por volta de 1863, vindos do sul do país. Não há registros precisos sobre sua origem, mas correspondências encontradas entre os pertences de Augusto sugerem uma possível ascendência francesa e uma educação formal que destoava drasticamente da brutalidade do sertão. Nos primeiros anos, os irmãos dedicaram-se à mineração sem sucesso aparente, uma atividade que servia apenas como pretexto, como uma fachada para suas intenções reais. A decisão de abrir uma hospedaria parece ter sido motivada pela crescente movimentação de garimpeiros, comerciantes e exploradores que começavam a transitar pela região, transformando o lugar em um ponto de parada obrigatório, um funil de almas.

Um censo regional realizado em 1864 menciona brevemente os irmãos como “dois indivíduos estrangeiros dedicados à busca de minerais”, sem acrescentar mais detalhes, uma anotação burocrática sobre um mal que estava se instalando lentamente. Curiosamente, um relatório da Guarda Imperial datado do mesmo ano registra uma breve investigação sobre “dois homens de sotaque peculiar” suspeitos de transportar materiais químicos sem a devida autorização. Embora os nomes não sejam mencionados, as datas e a localização coincidem sinistramente com a chegada dos Morvan à região. A investigação foi aparentemente arquivada sem conclusão definitiva, possivelmente devido à dificuldade de enviar agentes a uma região tão remota, apenas para verificar uma denúncia sem maiores evidências, um erro que custaria a vida de muitos.

Entre os poucos que tiveram contato com os irmãos durante esse período inicial, estava um minerador chamado João Ferreira, que mencionou em correspondência a um sócio em Cuiabá ter encontrado “dois estrangeiros de maneiras refinadas, em flagrante contraste com o entorno rústico”. Segundo Ferreira, os homens pareciam ter conhecimento incomum sobre geologia e química, mas se mostravam estranhamente reservados quanto a seus objetivos na região. A carta, preservada em uma coleção particular e apenas recentemente descoberta por historiadores, contém um detalhe perturbador: Ferreira observou que os irmãos pareciam particularmente interessados em suas descrições dos grupos indígenas isolados da região, especialmente nos relatos sobre rituais envolvendo o consumo de preparados à base de plantas com propriedades psicoativas, sugerindo uma busca por conhecimento ancestral para fins perversos.

O que tornou o caso dos irmãos Morvan particularmente notável e macabro foram os registros de desaparecimentos que começaram a ser reportados a partir de 1874. Segundo o livro de ocorrências da vila de Barra do Garças, entre 1874 e 1878, aproximadamente 17 pessoas foram dadas como desaparecidas na região da Serra do Roncador. O curioso é que, embora os desaparecimentos fossem espalhados ao longo desses anos, havia um padrão que só a retrospectiva fria poderia revelar. Todos eram viajantes solitários, sem família ou conexões fortes na região, o que garantia que ninguém faria perguntas inconvenientes, e a maioria carregava consigo valores consideráveis, moedas de ouro, joias, títulos, que eram o preço final.

Estes desaparecimentos seguiam um padrão sazonal que só seria identificado anos mais tarde por investigadores revisitando os arquivos: ocorriam predominantemente durante a estação seca, entre maio e setembro, quando o fluxo de viajantes aumentava e as condições de travessia eram mais favoráveis. Outro padrão significativo era o intervalo entre os casos: raramente ocorriam dois desaparecimentos com menos de três semanas de diferença, sugerindo algum tipo de ciclo, um processo ritualístico ou de extração que requeria tempo e preparo para ser completado em sua totalidade, como a maturação de uma colheita sinistra.

Os desaparecimentos não receberam atenção imediata das autoridades centrais. A região era conhecida por seus perigos intrínsecos e não era incomum pessoas simplesmente não retornarem de expedições ao interior, engolidas pelo sertão. Conforme observa o relatório provincial de 1876, “as vastidões do sertão frequentemente consomem homens sem deixar rastro, seja pela ação de elementos naturais, seja pelo encontro com selvagens ou desertores da lei”, uma explicação conveniente que evitava o comprometimento de recursos escassos para investigações em áreas remotas.

Um detalhe passou despercebido na época, mas que seria significativo para investigações posteriores, foi registrado por um padre que visitou a hospedaria em 1875. Em seu diário pessoal, encontrado décadas depois no Arquivo da Diocese de Cuiabá, o religioso notou que os irmãos mantêm um livro onde registram cada hóspede com meticulosa atenção, anotando mais detalhes do que seria de esperar em estabelecimento tão rústico. O padre também mencionou que Teodoro parecia particularmente interessado em saber se “alguém esperava pelo religioso em seu destino” e insistiu em mostrar-lhe um atalho que, segundo ele, reduziria significativamente o tempo de viagem. O religioso, seguindo o que descreveu como um instinto inexplicável de autopreservação, educadamente recusou a oferta e manteve-se na trilha principal, decisão que, ele saberia mais tarde, possivelmente salvou sua vida da extração.

Outro registro significativo, encontrado em uma carta enviada por um comerciante chamado Ricardo Lopes a sua esposa em São Paulo, menciona a estranha atmosfera da hospedaria durante sua estadia em 1876. “Apesar do tratamento cordial”, escreveu, “há algo no ar daquele lugar que pesa sobre o espírito. Os olhares trocados entre os irmãos parecem carregar mensagens cifradas, uma comunicação silenciosa e terrível. E à noite, embora o cansaço da jornada me puxasse para o sono, lutei contra ele, temendo algum perigo que não podia nomear. Mantive minha arma a alcance e tranquei a porta com uma cadeira sob a maçaneta. Ainda assim, pela manhã, notei que alguém havia tentado abri-la durante a noite.”

Durante muito tempo, esses desaparecimentos foram atribuídos aos perigos naturais da serra: desfiladeiros traiçoeiros, animais selvagens, grupos indígenas isolados. Mas foi só em 1879 que um fato aparentemente banal levantou as primeiras suspeitas sobre a hospedaria dos Morvan, um evento que a natureza não pôde encobrir. Um comerciante de nome Eduardo Mendes chegou à vila de Barra do Garças em estado de grande agitação, pálido e incoerente. Segundo o relato registrado pelo delegado local, o comerciante havia pernoitado na hospedaria dos Morvan e, durante a madrugada, ouviu sons estranhos vindos do porão, um espaço que oficialmente não existia na planta da hospedaria.

Eduardo Mendes era um homem de 42 anos, comerciante de ferramentas e suprimentos para mineração. Conforme seu depoimento, havia partido de Cuiabá com destino a Goiás, transportando mercadorias e uma quantia considerável em moedas de ouro. Ao chegar à hospedaria, foi recebido por Teodoro, que lhe ofereceu o quarto mais afastado da área comum, por ser, supostamente, mais silencioso e confortável. Durante o jantar, Eduardo notou que era o único hóspede naquela noite, um fato que Teodoro atribuiu à redução no fluxo de viajantes devido às recentes chuvas. O comerciante descreveu Teodoro como excessivamente atencioso, servindo-lhe porções generosas de carne e insistindo para que provasse a famosa água da serra. Eduardo, no entanto, alegou preferir a aguardente que carregava consigo, uma decisão que, segundo ele, pareceu desagradar sutilmente ao anfitrião. Durante a refeição, notou que Augusto, o irmão mais jovem, observava-o intensamente da entrada de um corredor escuro, sem nunca se aproximar ou falar diretamente. Esta presença silenciosa e julgadora o deixou profundamente desconfortável, embora tentasse não demonstrar.

Segundo Eduardo, por volta das 2 horas da madrugada, foi despertado por sons que descreveu como arranhões e gemidos abafados, como se alguém estivesse sendo arrastado e se debatendo contra o chão. Ao tentar sair do quarto para investigar, descobriu que a porta estava trancada pelo lado de fora, uma prisão silenciosa. Foi somente ao amanhecer que Teodoro veio destrancá-lo, explicando, com uma calma suspeita, que havia fechado a porta para “proteger o hóspede dos perigos da noite e de ladrões”. O comerciante relatou que, antes mesmo de Teodoro chegar, havia observado, através de uma fresta nas tábuas do assoalho, o que parecia ser uma luz em movimento abaixo do nível do chão, indicando a existência de algum tipo de porão ou espaço subterrâneo não mencionado aos hóspedes, o local de um segredo sombrio.

O depoimento do comerciante foi inicialmente desconsiderado. Eduardo era conhecido por seu temperamento exaltado e, conforme consta no relatório, havia consumido quantidade considerável de aguardente na noite do ocorrido. No entanto, seu relato continha um detalhe perturbador que mais tarde se revelaria crucial. Segundo ele, ao tentar sair do quarto para investigar os sons, encontrou a porta trancada pelo lado de fora. Um aspecto não mencionado no relatório oficial, mas registrado nas anotações pessoais do delegado, foi que Eduardo também relatou ter notado um sabor peculiarmente amargo na bebida servida após o jantar. Segundo ele, recusou um segundo copo oferecido insistentemente por Teodoro, alegando que já havia bebido o suficiente, uma recusa que, ele não sabia, o salvou da extração. O delegado, sem dar muita importância ao fato, não incluiu este detalhe no relatório formal, considerando-o irrelevante ou possivelmente uma tentativa do comerciante de justificar seu estado embriagado.

Eduardo Mendes deixou a região poucos dias após prestar seu depoimento, aparentemente insatisfeito com a falta de atenção dada às suas alegações. Correspondências posteriores indicam que retornou a Cuiabá, onde continuou seu negócio por alguns anos antes de se mudar para o Rio de Janeiro. Em uma carta enviada a um amigo em 1882, após os eventos principais terem vindo à tona, Eduardo escreveu: “Sempre soube que havia algo profundamente errado naquele lugar. Os olhos daquele homem Teodoro tinham um brilho que não era natural, como se estivesse sempre calculando o valor de quem estava à sua frente, precificando sua vida e seu destino.”

A vida na hospedaria dos Morvan seguia uma rotina aparentemente normal, um disfarce perfeito para suas atividades macabras. Teodoro, o mais velho dos irmãos, era quem cuidava da manutenção do local e do atendimento aos viajantes, a face visível e acolhedora do mal. Descrito por aqueles que o conheceram como um homem de poucas palavras, mas cortês, Teodoro tinha o hábito, quase ritualístico, de servir aos hóspedes uma bebida que chamava de água da serra, supostamente coletada de uma nascente especial nas proximidades e que, segundo ele, tinha propriedades revigorantes. Teodoro Morvan era um homem de aproximadamente 50 anos, alto e magro, com uma barba grisalha sempre bem aparada. Um aspecto frequentemente mencionado era sua capacidade de recordar detalhes sobre hóspedes anteriores, mesmo aqueles que haviam passado pela hospedaria anos antes, uma memória que assumiria um significado mais sinistro após as revelações sobre as verdadeiras atividades dos irmãos.

A rotina diária da hospedaria, conforme reconstruída por investigadores, começava antes do amanhecer. Teodoro levantava-se com as primeiras luzes para preparar a refeição matinal, geralmente uma combinação de carne seca, farinha e café forte. Os hóspedes que partiam cedo recebiam provisões para a viagem, enquanto aqueles que chegavam tarde da noite encontravam sopa quente e pão, independentemente do horário. Esta disponibilidade constante de alimentos preparados sugeria que alguém estava sempre acordado na hospedaria, em vigilância perpétua. Um detalhe que intrigou os investigadores foi a presença constante de cheiro de produtos químicos e ferro na parte de trás da casa, um odor que se misturava ao cheiro de lenha queimada.

Augusto, por sua vez, era raramente visto pelos hóspedes, a mente por trás do plano, a verdadeira ameaça. Conforme relatos, passava a maior parte do tempo nos fundos da propriedade, onde mantinha um pequeno laboratório. Ex-estudante de farmácia em Porto Alegre, conforme indicam documentos encontrados posteriormente, Augusto havia abandonado os estudos após um incidente não especificado, levando consigo um conhecimento farmacêutico avançado e pervertido. Nos raros momentos em que interagia com os hóspedes, era descrito como excessivamente atencioso, sempre interessado em saber detalhes sobre a vida e os pertences dos viajantes. Mais jovem que Teodoro por aproximadamente 5 anos, Augusto tinha uma aparência que contrastava com a do irmão. Um hóspede que o conheceu em 1877 descreveu seus olhos como inquietantemente claros, quase transparentes, em constante movimento, como se buscassem algo que os outros não podiam ver, a essência oculta. Outro aspecto frequentemente mencionado era a condição de suas mãos. Apesar do trabalho físico que a vida na serra exigia, Augusto mantinha as mãos impecavelmente limpas, com unhas bem cuidadas, um detalhe que um médico que depois examinou os registros, atribuiu a hábitos adquiridos durante a formação em práticas farmacêuticas e cirúrgicas.

O relacionamento entre os irmãos, conforme observado por vários hóspedes, era caracterizado por uma dinâmica peculiar. Embora Teodoro fosse o mais velho e aparentemente responsável pela administração prática do estabelecimento, ficava evidente para observadores atentos que era Augusto quem realmente controlava as operações, o cérebro que dirigia a mão. As poucas vezes em que foram vistos interagindo, Teodoro demonstrava uma deferência incomum ao irmão mais novo, quase subserviente, uma lealdade a um propósito sombrio. Um viajante observou que os irmãos raramente se dirigiam um ao outro diretamente na presença de hóspedes, mas pareciam comunicar-se através de olhares e gestos sutis, como se compartilhassem um código particular, uma linguagem silenciosa de cúmplices.

O laboratório de Augusto, conforme descrito em relatos posteriores, ocupava um cômodo separado da estrutura principal da hospedaria. O interior, meticulosamente organizado, continha estantes com dezenas de frascos de vidro, um conjunto de instrumentos metálicos de precisão e o que testemunhas descreveram como uma coleção impressionante de livros científicos, muitos em francês e alemão. A presença destes materiais em local tão remoto foi considerada extraordinária pelos investigadores, sugerindo que os irmãos Morvan não eram simples criminosos oportunistas, mas homens com formação e propósito específico, perverso.

Entre os livros posteriormente encontrados no laboratório, destacavam-se obras de fisiologia avançada, tratados sobre o sistema nervoso humano e alguns textos mais obscuros sobre teorias alquímicas medievais relacionadas à transferência de essências vitais entre seres vivos. Um volume particularmente significativo, anotado extensivamente nas margens por Augusto, tratava de experimentos controversos realizados por cientistas europeus no início do século XIX, envolvendo a estimulação elétrica de tecidos cerebrais, recém-extraídos de animais e, em alguns casos documentados, de criminosos executados.

O que poucos sabiam naquela época era que os irmãos Morvan mantinham um meticuloso livro de registros sobre cada hóspede. Um livro encontrado anos depois, durante as investigações, continha anotações detalhadas, nome, origem, destino, pertences de valor e, curiosamente, peso aproximado. Ao lado de alguns nomes, havia marcações em código que os investigadores nunca conseguiram decifrar completamente. O livro de registros continha mais de 200 páginas preenchidas com a caligrafia precisa e fria de Augusto. Cada entrada seguia um formato consistente: data, hora de chegada, nome do hóspede, idade estimada, condição física, destino declarado, pertences notáveis e uma série de observações codificadas na margem direita da página.

Os códigos, compostos por combinações de letras e números, foram parcialmente interpretados como referências à adequação do indivíduo para os procedimentos realizados pelos irmãos. A letra ‘A’, seguida de um número alto (A7, A8, A9), parecia indicar prioridade máxima, um “material” de alta qualidade, enquanto entradas marcadas com ‘R’ eram aparentemente descartadas como inadequadas ou problemáticas.

Particularmente perturbador foi o sistema de categorização desenvolvido por Augusto. Em notas marginais, ele classificava os hóspedes de acordo com características físicas e comportamentais específicas. Termos como “nervoso sanguíneo”, “linfático biliar” e “cerebral dominante” aparecem frequentemente, sugerindo uma taxonomia pessoal baseada em teorias humorais medievais combinadas com conceitos pseudocientíficos da época. Estas classificações aparentemente determinavam a qualidade dos fluidos que poderiam ser extraídos do indivíduo e, consequentemente, seu valor para os experimentos de Augusto, seu preço final.

Um aspecto particularmente inquietante do livro de registros era a inclusão ocasional de pequenas amostras físicas anexadas às páginas, fios de cabelo, fragmentos de unhas ou tecido e, em alguns casos, o que pareciam ser pequenas manchas de sangue seco. Cada amostra estava cuidadosamente rotulada e, aparentemente, correspondia a testes preliminares realizados nos hóspedes, provavelmente sem conhecimento ou consentimento. Estas amostras, conforme notaram os investigadores, eram mais frequentes nas entradas marcadas com códigos de alta prioridade, sugerindo uma seleção progressiva e metódica das potenciais vítimas.

A hospedaria prosperou durante anos, apesar de sua localização remota, ou talvez por causa dela. Viajantes que precisavam cruzar a serra não tinham muitas opções de abrigo e os Morvan cobravam preços justos, ofereciam comida simples, mas abundante, e não faziam perguntas demais, uma qualidade apreciada por muitos que transitavam por aquela região de fronteira. Com o passar dos anos, os irmãos expandiram gradualmente a estrutura da hospedaria. Em 1876, acrescentaram dois quartos adicionais e ampliaram a área comum. No mesmo ano, construíram um pequeno galpão separado, ostensivamente para armazenar lenha e ferramentas, mas que, conforme investigações posteriores revelariam, continha uma entrada secundária para o porão subterrâneo, o verdadeiro coração da operação.

Esta expansão coincidiu com um aumento no fluxo de viajantes pela região, atraídos por rumores de novos veios auríferos descobertos além da serra. Um aspecto notável da operação dos Morvan era sua capacidade de manter suprimentos constantes, apesar do isolamento. A cada três ou quatro semanas, Teodoro fazia uma viagem à vila mais próxima para adquirir itens essenciais: farinha, café, sal e ocasionalmente tecidos ou ferramentas. Nestas viagens, transportava também pequenos lotes da água da serra para venda, conforme relatos de comerciantes locais. Teodoro sempre pagava em moedas de ouro ou prata, nunca regateava preços e completava seus negócios com eficiência silenciosa antes de retornar à serra.

Em 1876, um fato aparentemente sem relação com os Morvan ocorreu na vila de Barra do Garças. O médico local, Dr. Anselmo Vieira, registrou em seu diário pessoal uma série de observações sobre o que chamou de “mal estranho”, que afetava alguns moradores. Os sintomas incluíam confusão mental, fraqueza progressiva e, em casos mais graves, paralisia. Na época, o médico atribuiu a condição a algum tipo de contaminação nas águas do rio Garças, mas nunca conseguiu comprovar sua teoria.

Dr. Anselmo Vieira, um dos poucos médicos formados atuando na região, mantinha registros detalhados de seus casos em cadernos encadernados em couro. O primeiro caso registrado foi o de dona Emerenciana Coutinho, esposa de um próspero comerciante local, que inicialmente apresentou tremores nas extremidades e sensação de formigamento constante. Em questão de semanas, a condição progrediu para fraqueza generalizada, dificuldade de articulação da fala e períodos de confusão aguda. Nos meses seguintes, o médico documentou mais sete casos com progressão similar. Todos os pacientes pertenciam à elite local ou eram comerciantes bem-sucedidos. Justamente o grupo que tinha recursos para adquirir o custoso tônico vendido por Teodoro Morvan.

Dr. Anselmo, formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro duas décadas antes, conduziu uma investigação sistemática, coletando amostras de água de diferentes pontos do rio e examinando alimentos consumidos pelos afetados. Em suas anotações, expressou crescente frustração com a incapacidade de identificar a causa da doença ou de proporcionar alívio efetivo aos pacientes.

Um detalhe significativo aparece em uma entrada datada de abril de 1877. Notei hoje um fenômeno desconcertante. Ao examinar o Sr. Barcelos, este começou a recitar detalhes de uma viagem ao Rio de Janeiro que alega jamais ter realizado. Descreveu com precisão inquietante locais e pessoas que, segundo sua esposa, ele nunca poderia ter conhecido. Mais perturbador ainda: alguns destes detalhes correspondem exatamente a experiências relatadas pelo Senhor Mendonça, antes de seu falecimento no mês passado, outro paciente afetado pelo mesmo mal. É como se fragmentos da memória de um tivessem de alguma forma sido transferidos ao outro.

As observações do Dr. Anselmo continuaram nos meses seguintes, documentando casos cada vez mais bizarros de aparente contaminação mental entre seus pacientes. Uma entrada particularmente perturbadora relata o caso de uma senhora idosa que, embora nunca tivesse saído da província, começou a falar fluentemente em francês durante seus episódios de delírio, língua que jamais havia estudado. Em outro caso, um fazendeiro local começou a demonstrar conhecimentos técnicos sobre mineralogia completamente estranhos à sua formação e ocupação. O médico, homem de ciência formado sob princípios positivistas, lutava visivelmente em suas anotações para encontrar explicações racionais para fenômenos que desafiavam sua compreensão do funcionamento da mente humana.

O que ninguém percebeu então foi a coincidência temporal. Os casos do “mal estranho” começaram a surgir pouco depois que os irmãos Morvan passaram a vender na vila pequenos frascos de sua “água da serra”, anunciada como um tônico natural. A água era comercializada a preços elevados e encontrava compradores, principalmente entre os mais abastados da região. Os frascos do tônico, feitos de vidro verde escuro e selados com cera vermelha, continham aproximadamente 100 ml de um líquido âmbar de odor levemente adocicado, que mascarava o horror. Teodoro apresentava o produto como destilado das águas mais puras da serra, enriquecidas com essências vegetais de propriedades revigorantes. Recomendava seu consumo diário em pequenas doses, preferencialmente antes de dormir. O preço, considerável para os padrões da época, era justificado pela suposta raridade dos ingredientes e pela complexidade do processo de preparação.

A comercialização do tônico seguia um padrão calculado. Inicialmente, Teodoro oferecia amostras gratuitas a figuras influentes da comunidade. O prefeito, comerciantes prósperos, o próprio Dr. Anselmo, que ironicamente recusou por preferir remédios convencionais. Aqueles que experimentavam relatavam efeitos imediatos: sensação de vigor, clareza mental, melhora do sono. Estes testemunhos criavam demanda, permitindo que Teodoro cobrasse preços cada vez mais elevados pelas remessas subsequentes. O frasco que inicialmente custava o equivalente a dois dias de trabalho de um operário comum, chegou a ser vendido por valores comparáveis ao preço de uma cabeça de gado. Curiosamente, os primeiros compradores relataram efeitos positivos quase imediatos, aumento da energia, clareza mental e, em alguns casos, melhora da libido. Estes benefícios iniciais tornavam o produto extremamente desejável. Foi somente após meses de uso contínuo que os efeitos adversos começaram a manifestar-se, inicialmente de forma tão sutil que muitos consumidores não estabeleceram conexão com o tônico quando finalmente a relação foi sugerida pelo Doutor Anselmo. Muitos resistiram à ideia de abandonar o consumo, exibindo o que ele descreveu em suas anotações como um apego irracional, semelhante ao observado em dependentes de ópio, uma fixação macabra.

A rotina na hospedaria seguia sem grandes alterações, o disfarce era perfeito. Os irmãos recebiam os viajantes, ofereciam abrigo e alimentação e, pela manhã, se despediam daqueles que continuavam sua jornada. Em algumas ocasiões, conforme registros posteriores indicariam, certos hóspedes nunca chegavam a seus destinos. As bagagens eventualmente encontradas nunca continham itens de valor. Diante das dificuldades de comunicação e da vastidão da região, esses desaparecimentos raramente levantavam suspeitas imediatas.

Os procedimentos desenvolvidos pelos irmãos Morvan para selecionar suas vítimas demonstravam um nível de planejamento meticuloso e uma frieza clínica assustadora. Durante a refeição noturna, Teodoro engajava os hóspedes em conversas aparentemente casuais, que, na verdade, seguiam um roteiro cuidadosamente elaborado para extrair informações cruciais: se o viajante tinha família à sua espera, se alguém sabia de sua rota exata, se carregava documentos ou cartas que deveriam ser entregues em seu destino, informações cruciais sobre sua descartabilidade. Baseado nestas informações, combinadas com observações sobre a condição física do indivíduo e uma avaliação preliminar de seus pertences, Teodoro decidia se o hóspede seria marcado como potencial vítima.

Em caso afirmativo, servia-lhe uma dose generosa da água da serra, contendo uma concentração mais elevada do sedativo derivado de plantas raras. Durante a noite, verificava o efeito através de uma pequena abertura disfarçada na parede de cada quarto, espiando a agonia. Se o hóspede demonstrasse sinais de consciência persistente, uma segunda dose era oferecida sob algum pretexto, geralmente como remédio para mal-estar causado pela altitude. Uma vez sedado completamente, o hóspede era transportado para o porão através de uma passagem oculta sob um dos tapetes da sala comum, a porta para o horror. Lá, Augusto conduzia o que chamava em seus registros de procedimento de extração.

O processo, detalhado em seus cadernos com precisão clínica assustadora, envolvia a coleta de diversos fluidos corporais, com ênfase especial no que ele denominava “essência nervosa”, provavelmente fluido cérebro-espinhal, embora suas descrições sugerissem técnicas de extração não reconhecidas pela medicina convencional. Os cadernos de Augusto revelam uma progressão perturbadora em seus métodos ao longo dos anos. As primeiras extrações, realizadas por volta de 1873, eram relativamente simples e focadas principalmente em fluidos sanguíneos. Com o tempo, seus procedimentos tornaram-se mais invasivos e elaborados, culminando no que ele descrevia como “extração completa de essência cerebral”, um processo que, conforme suas próprias anotações, inevitavelmente resultava na cessação das funções vitais do sujeito, a morte fria e calculada.

Foi somente em 1879 que o caso tomou um rumo decisivo. Um grupo de quatro garimpeiros, retornando de uma expedição mal-sucedida, decidiu pernoitar na hospedaria dos Morvan. Segundo o relato de Jerônimo Santos, o único sobrevivente do grupo, eles foram recebidos com a habitual cordialidade pelos irmãos. Após o jantar, Teodoro serviu a todos a famosa água da serra. Jerônimo, que sofria de dores estomacais, foi o único que recusou a bebida. Jerônimo Santos havia acompanhado os amigos mais por companhia do que por interesse no garimpo. Conforme seu depoimento, ele sofria de uma condição estomacal crônica que o tornava extremamente cauteloso com bebidas desconhecidas, uma condição que, ironicamente, salvou sua vida. Quando Teodoro ofereceu a água da serra, Jerônimo notou um brilho peculiar nos olhos do anfitrião ao insistir que a bebida poderia aliviar suas dores. A insistência incomum despertou suspeitas, levando-o a recusar educadamente, alegando que já havia tomado seu próprio remédio.

O grupo de garimpeiros havia passado cinco semanas explorando um tributário distante do Rio das Mortes. Cansados e desapontados, viram a hospedaria dos Morvan como uma oportunidade bem-vinda para descansar adequadamente. Durante o serão, Jerônimo observou que seus companheiros, após consumirem a bebida, começaram a demonstrar sinais crescentes de letargia. Bartolomeu, o mais robusto do grupo, foi o primeiro a retirar-se, cambaleando visivelmente, apesar de ter consumido apenas um copo de aguardente além da água da serra. Os outros dois seguiram pouco depois, deixando Jerônimo sozinho com os irmãos Morvan. Neste momento, segundo seu relato, percebeu uma troca de olhares entre Augusto e Teodoro, que o deixou profundamente desconfortável. Fingindo também estar afetado pela fadiga, retirou-se para o quarto compartilhado com os companheiros, mas permaneceu vigilante. Ao verificar seus amigos, Jerônimo descobriu que todos estavam em estado de inconsciência profunda, impossíveis de despertar, mesmo com chacoalhões vigorosos. Este fato aumentou consideravelmente sua ansiedade, levando-o a barricar a porta do quarto e manter vigília armada durante parte da noite.

Eventualmente, contudo, o cansaço da jornada o venceu e ele adormeceu sentado em uma cadeira próxima à janela. Durante a madrugada, Jerônimo acordou com um mal-estar e saiu do quarto em busca de ar fresco. Foi então que presenciou uma cena que mudaria o curso da história dos irmãos Morvan. Através de uma fresta na porta dos fundos, viu Teodoro e Augusto carregando seus três companheiros completamente inertes, em direção a uma portinhola no chão que levava a um porão não mencionado a nenhum dos hóspedes.

A cena descrita por Jerônimo em seu depoimento é perturbadora em sua precisão e frieza. Sob a luz fraca de uma lamparina, viu Teodoro arrastando um de seus companheiros pelos braços, enquanto Augusto segurava uma pequena maleta metálica e supervisionava o processo com calma. A portinhola, habilmente camuflada no assoalho da despensa, havia sido aberta, revelando uma escada que descia na escuridão. O que mais impressionou Jerônimo foi a eficiência mecânica com que os irmãos trabalhavam, como se tivessem realizado aquela mesma tarefa dezenas de vezes antes. Em suas palavras, o ato não era de violência, mas de “um trabalho de rotina e desinteresse”. Mais perturbador ainda foi ouvir Augusto reclamar que “o ruivo”, referindo-se a um dos companheiros de Jerônimo, “não seria tão produtivo quanto esperava, pois apresentava sinais de doença hepática”.

Escondido nas sombras do corredor, Jerônimo observou o processo por alguns minutos, paralisado pelo medo e pela indecisão. Quando viu o último de seus companheiros ser levado para o porão e a portinhola começar a ser fechada, compreendeu que precisava fugir imediatamente. Retornou ao quarto silenciosamente, reuniu apenas seus documentos, uma pequena quantia em dinheiro e seu revólver, deixando para trás todo o equipamento de mineração para não chamar atenção com o volume. Tomado pelo pânico, Jerônimo fugiu imediatamente, levando apenas o que conseguiu carregar, o peso do horror sobre seus ombros. Caminhou durante toda a noite e parte do dia seguinte, evitando a trilha principal, até chegar a um acampamento de caçadores, onde relatou o que havia presenciado. A consistência de seu relato e seu estado de visível perturbação acabaram convencendo os caçadores a reportar o caso às autoridades de Barra do Garças.

A fuga de Jerônimo foi particularmente arriscada. Sem conhecer bem a região e temendo ser perseguido, evitou a trilha principal e aventurou-se pelo mato fechado, orientando-se apenas pela posição das estrelas. Em seu depoimento, relatou ter ouvido sons de movimento na floresta durante a madrugada, como se alguém o seguisse, embora nunca tenha avistado um perseguidor diretamente. Chegou ao acampamento de caçadores em estado de exaustão extrema, com os pés em carne viva e sinais de desidratação severa. O líder do grupo, José Antônio Pereira, descreveu posteriormente o estado de Jerônimo como o de “um homem que viu o próprio diabo”.

O delegado Horácio Mendonça, homem pragmático e conhecedor da região, decidiu investigar pessoalmente as alegações. Acompanhado por seis homens armados, dirigiu-se à hospedaria dos Morvan três dias após receber o relato de Jerônimo. O que encontraram ao chegar desafiou até mesmo a compostura do experiente delegado.

A viagem da vila até a hospedaria foi particularmente difícil. Chuvas recentes haviam tornado a trilha quase intransitável em alguns trechos. No relatório oficial, o delegado observou que “a natureza parecia conspirar para proteger os segredos daquele lugar maldito”. Ao chegarem ao vale, onde se situava a hospedaria, foram recebidos por um silêncio opressivo e antinatural. Nem mesmo o canto dos pássaros, comum naquela região, podia ser ouvido. A hospedaria estava silenciosa e aparentemente abandonada. Não havia sinal dos irmãos Morvan. No entanto, ao explorarem a propriedade, os homens descobriram a portinhola mencionada por Jerônimo. Abaixo dela, um porão escavado na rocha se estendia por aproximadamente 20 metros. O que encontraram lá dentro foi descrito no relatório oficial como “evidências de atividades de natureza perturbadora e contrária aos princípios da civilização”.

A descrição do porão presente no relatório completo arquivado em Goiás revela detalhes deliberadamente omitidos da versão que circulou publicamente. O espaço havia sido escavado com precisão na rocha viva, com paredes reforçadas por tijolos em pontos estratégicos. A iluminação era proporcionada por lamparinas a óleo fixadas em suportes de ferro ao longo das paredes, criando um ambiente de sombras oscilantes. O chão, ligeiramente inclinado em direção ao centro, convergia para um sistema de drenagem sofisticado que desembocava em uma cisterna selada.

A primeira seção do porão continha o que parecia ser uma área de preparação com uma mesa larga de madeira, diversos instrumentos cirúrgicos cuidadosamente organizados e frascos etiquetados contendo substâncias desconhecidas. Em um canto, uma pequena fornalha conectada a um sistema de ventilação permitia o aquecimento de líquidos sem encher o ambiente de fumaça.

A segunda seção, separada da primeira por uma cortina pesada, continha três mesas estreitas feitas de madeira maciça, cada uma equipada com correntes e fivelas de couro, dispositivos de contenção. As manchas escuras que cobriam estas superfícies, conforme confirmaria posteriormente a análise realizada pelo Dr. Anselmo, eram de sangue humano. Segundo documentos preservados nos Arquivos Judiciários de Goiás, o porão continha diversos instrumentos cirúrgicos, frascos com substâncias não identificadas e vários cadernos com anotações detalhadas escritas por Augusto Morvan. Em um dos cantos, encontraram um conjunto de cubas de cerâmica conectadas por tubos de cobre, formando um sistema de destilação rudimentar, um alambique do horror. Próximo a esse aparato havia dezenas de frascos vazios, idênticos aos utilizados para vender a “água da serra”.

O inventário meticuloso dos itens encontrados no porão foi realizado pelo escrivão que acompanhava a expedição. Entre os objetos mais perturbadores estavam seringas de vidro com agulhas de diversos calibres, alguns instrumentos de trepanação modificados e um conjunto de frascos, contendo o que parecia ser tecido cerebral preservado em solução. Uma prateleira isolada continha amostras cuidadosamente etiquetadas e datadas, cada uma com iniciais que, presume-se, correspondiam às vítimas. Particularmente perturbador foi o conteúdo de uma pequena arca trancada encontrada sob a mesa principal. Ao ser forçada, revelou dezenas de pequenos objetos pessoais: alianças, medalhões, crucifixos e até mesmo algumas cartas não enviadas. Cada item estava meticulosamente etiquetado com uma data e um código alfanumérico que correspondia ao sistema utilizado no livro de registros. Estes objetos, mais tarde identificados como pertencentes a viajantes desaparecidos, foram preservados como evidências.

O conteúdo dos cadernos de Augusto revelou uma realidade mais perturbadora do que qualquer um poderia imaginar. Os escritos, que combinavam conhecimentos farmacêuticos com teorias pseudocientíficas desenvolvidas pelo próprio Augusto, detalhavam experimentos realizados com fluidos corporais humanos. Segundo suas anotações, ele acreditava ter descoberto uma substância presente no sistema nervoso humano, que, quando processada adequadamente, produzia efeitos transformadores quando consumida.

Os cadernos, sete ao todo, abrangiam um período de aproximadamente 10 anos, começando antes mesmo da abertura da hospedaria. As primeiras entradas, datadas de 1866, descreviam experimentos com animais, principalmente cães e macacos encontrados na região. Estes experimentos iniciais focavam na extração e preservação do que Augusto chamava de “fluido vital”, aparentemente uma combinação de sangue e fluido cérebro-espinhal. Uma mudança significativa ocorre nas entradas datadas do início de 1870, quando Augusto menciona pela primeira vez ter testado seus extratos em um sujeito humano. A descrição clínica e desprovida de empatia com que relata o procedimento e seus resultados é particularmente perturbadora. A vítima, identificada apenas como “Sujeito A”, é descrita como “homem de aproximadamente 40 anos, constituição robusta, sem sinais aparentes de doença”. Augusto documenta meticulosamente o processo de sedação, extração e, eventualmente, “disposição do recipiente”, seu eufemismo para o assassinato e descarte do corpo.

As entradas subsequentes mostram uma evolução contínua de suas técnicas, com referências crescentes a teorias esotéricas sobre a transferência de essência entre indivíduos. Particularmente significativa é uma passagem datada de 1873, onde ele escreve: “Confirmado hoje o que há muito suspeitava: consumo regular do extrato Tipo B não apenas revigora o corpo, mas parece transferir fragmentos da consciência do doador. Após três semanas de administração controlada, o Sujeito C demonstrou conhecimento de eventos e locais que nunca experienciou pessoalmente, mas que faziam parte das memórias do Sujeito B, de quem o extrato foi derivado.”

Esta passagem foi posteriormente considerada por investigadores como a chave para compreender o fenômeno observado pelo Dr. Anselmo em seus pacientes: a aparente transferência de memórias e habilidades entre indivíduos não relacionados. Augusto havia aparentemente encontrado um método macabro para extrair, preservar e transferir componentes neurológicos que, de alguma forma, carregavam fragmentos de memória e personalidade, uma alquimia de almas.

As investigações subsequentes reconstituíram o que provavelmente acontecia na hospedaria dos Morvan. Os viajantes solitários, especialmente aqueles que carregavam valores, eram selecionados como vítimas. A “água da serra” continha, na verdade, um potente sedativo derivado de plantas locais. Uma vez inconscientes, os hóspedes eram levados ao porão, onde Augusto extraía os fluidos de que necessitava para seus experimentos. Os corpos eram posteriormente descartados em uma fenda natural encontrada a aproximadamente 1 km da hospedaria, uma boca da terra que engolia os mortos.

O procedimento, reconstruído com base nas anotações e nas evidências físicas, era executado com eficiência metódica. Após a sedação inicial no quarto, a vítima era transportada para o porão e fixada a uma das mesas de procedimento. Augusto então realizava uma série de extrações, começando com sangue arterial e progredindo para o que chamava de “essências superiores”, aparentemente fluidos extraídos do sistema nervoso central. O processo completo podia durar horas, durante as quais a vítima era mantida em estado de inconsciência através da administração contínua de sedativos. Um aspecto particularmente perturbador revelado pelos cadernos era o fato de que, em alguns casos, as vítimas eram mantidas vivas por dias, submetidas a extrações periódicas, até que Augusto considerasse ter obtido o máximo possível de material viável. Durante este período, eram alimentadas por via oral, com uma mistura nutritiva desenvolvida pelo próprio Augusto, e mantidas em estado de sedação constante em um compartimento separado do porão, referido em suas anotações como “sala de repouso”.

Quanto ao tônico vendido na vila, análises realizadas pelo Dr. Anselmo confirmaram que continha substâncias de origem humana. Os efeitos inicialmente estimulantes, seguidos por deterioração progressiva da saúde, coincidiam com o que Augusto descrevia em seus cadernos como o “preço da vitalidade emprestada”. As análises conduzidas pelo Dr. Anselmo foram limitadas pelos recursos disponíveis na época, mas ainda assim revelaram descobertas alarmantes. Em seu relatório, escreveu: “O líquido contém traços inequívocos de material orgânico de origem neural, combinado com compostos estimulantes derivados de plantas e minerais. A natureza exata do material neural não pode ser determinada com os recursos disponíveis, mas sua presença explica tanto os efeitos iniciais quanto a degeneração subsequente observada nos consumidores.”

Particularmente perturbadora foi a teoria proposta pelo médico sobre o mecanismo de ação do tônico. Baseando-se nas observações clínicas e nas anotações de Augusto, Dr. Anselmo sugeriu que o consumo contínuo do produto criava uma forma de dependência fisiológica e psicológica. Os componentes neurais estranhos eram inicialmente interpretados pelo organismo como benéficos, produzindo sensações de euforia e clareza mental. Com o tempo, porém, o sistema nervoso do consumidor começava a reagir adversamente à presença contínua deste material estranho, resultando em deterioração progressiva das funções neurológicas, à medida que a vitalidade emprestada se esgotava.

A busca pelos irmãos Morvan estendeu-se por meses, mobilizando autoridades de várias vilas da região. Relatos esporádicos indicavam que haviam sido vistos rumando para o norte, possivelmente em direção ao Pará. No entanto, nenhuma confirmação concreta de seu paradeiro foi jamais estabelecida. Em 1881, um incêndio consumiu a hospedaria, destruindo parte das evidências. Especulou-se que o fogo teria sido obra de alguém ligado aos Morvan, ou talvez de moradores supersticiosos, que temiam que o local estivesse de alguma forma contaminado pelas atividades que ali ocorreram. A Serra do Roncador, implacável e silenciosa, havia engolido seus segredos mais sombrios, e os irmãos Morvan se tornaram mais uma lenda macabra a assombrar a fronteira entre o conhecido e o eterno desconhecido. O terror não estava apenas no que fizeram, mas na possibilidade de estarem ainda lá fora, buscando novos locais para sua extração de essências vitais.

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