O sol de junho de 1854 descia devagar sobre os canaviais do Engenho velho na região de Itapecuru interior do Maranhão. O cheiro de cana moída misturava-se com o suor e o medo que pairava sobre aquelas terras. Havia mais de 100 escravizados trabalhando sob o comando de 16 feitores, homens conhecidos pela brutalidade que faziam questão de exibir todos os dias.

Naquela noite, porém, o terror mudaria de lado para sempre. O engenho velho não era apenas uma propriedade rural. Era um reino de dor onde a violência era lei e a resistência era punida com morte. Os canaviais se estendiam até onde a vista alcançava, mas era dentro da casa de moenda que se escondia o verdadeiro horror.
Ali, entre as enormes rodas de madeira e ferro que trituravam a cana, muitas vezes se ouvia algo além do barulho das engrenagens. eram os gritos de escravizado sendo torturados pelos feitores. O proprietário Coronel Henrique de Vasconcelos, raramente pisava na propriedade. Preferia a comodidade de seu sobrado em São Luís, deixando o dia a dia nas mãos dos feitores.
E esses homens, liderados pelo temido João Cascalho, faziam questão de mostrar que ali não havia lei além da chicotada e da humilhação. Mas naquela noite de junho, 300 anos de opressão explodiriam numa vingança que marcaria para sempre história da resistência escrava no Maranhão.
Entre os escravizados do Engenho Velho, três nomes se destacavam pela liderança silenciosa. Benedito Angola, um homem de 40 anos que chegou criança ao Brasil, Maria Quitéria, parteira e conhecedora das ervas, e Joaquim Mina, ferreiro habilidoso que consertava as ferramentas e conhecia cada parafuso da moenda. Esses três, junto com outros companheiros, vinham planejando há meses uma vingança que jamais seria esquecida.
O dia começava sempre igual no Engenho velho, com o som do sino batendo às 4 da madrugada e os gritos dos feitores acordando os escravizados nas cenzalas. Levanta, cambada de preguiçosos, quem não tiver no canavial em 10 minutos, apanha até não poder mais. Berrava João Cascalho, o feitor mor, um homem baixo e gordo que compensava o tamanho com crueldade extra. Benedito Angola acordava antes mesmo do sino tocar.
Já estava acostumado com aquela rotina depois de tantos anos no engenho. Olhava ao redor da cenzala escura, onde mais de 20 homens dormiam amontoados em esteiras velhas, e sentia crescer no peito uma raiva que já não conseguia mais engolir. Ao seu lado, Joaquim Mina ajeitava as ferramentas de trabalho enquanto sussurrava baixinho: “Mais um dia de inferno, irmão”. A correria começava logo depois do sino.
Homens, mulheres e até crianças de 12 anos saíam das cenzalas como formigueiro atacado. Quem demorasse demais recebia chibatadas na porta na frente de todo mundo, para servir de exemplo. Os feitores se divertiam com essa demonstração de poder, rindo alto quando alguém tropeçava ou caía tentando correr descalço no chão de pedra.
Olha só esse aqui, gente. Parece que não dormiu bem. Gritava por filho, um dos feitores mais jovens, apontando para um rapaz de uns 15 anos que tinha tropeçado. Vem cá, molequinho. Vou te ensinar a acordar direito. O garoto tentou correr, mas dois outros feitores já o cercaram. As chibatadas ecoaram pelo terreiro enquanto os outros escravizados eram obrigados a assistir de cabeça baixa.
Maria Quitéria, que estava na fila das mulheres, cerrou os punhos com força. Como parteira, ela já havia ajudado dezenas de crianças a nascer naquele engenho, só para vê-las crescer e sofrer nas mãos dos mesmos homens que agora batiam no menino.
“Um dia essa conta vai ser cobrada”, pensou ela, sem tirar os olhos do chão. No canavial, o trabalho era pesado e sem pausa. Os homens cortavam a cana sob o sol escaldante, enquanto as mulheres carregavam os feixes até as carroças. Os feitores montados a cavalo circulavam entre os trabalhadores, sempre prontos para aplicar castigos por qualquer motivo. Cortar devagar, parar para beber água, conversar com um companheiro ao lado.
“Ei, você aí? Isso é jeito de cortar cana!”, gritou Manuel Surrador, outro feitor conhecido pela violência, apontando para um homem já velho que se esforçava para acompanhar o ritmo dos mais novos. Parece que esqueceu como se trabalha direito. O velho tentou acelerar o movimento, mas suas mãos trêmulas não conseguiam segurar bem a ferramenta.
Benedito Angola, que trabalhava perto, viu quando Manuel surrador desceu do cavalo com chicote na mão. Era sempre assim. Qualquer pretexto servia para humilhar e machucar. “Esse velho já deu o que tinha que dar pro senhor”, murmurou Joaquim Mina, que também presenciava a cena. “Agora só serve de diversão para esses cachorros.
As chicotadas foram tão violentas que o velho desabou ali mesmo entre os pés de cana. Sangue escorria pelas costas abertas enquanto ele gemia baixinho. Os outros escravizados foram obrigados a continuar trabalhando como se nada tivesse acontecido. Quem parasse para ajudar apanharia também.
“Alguém tem que dar um jeito nesses demônios”, sussurrou Maria Quitéria para Benedito quando os feitores se afastaram. Não dá mais para aguentar isso todo santo dia. Benedito apenas acenou com a cabeça, mas por dentro sentia a mesma vontade crescendo como fogo. Era preciso fazer alguma coisa.
E logo o almoço era servido às 11 horas, um pedaço pequeno de carne seca, farinha de mandioca e água. 20 minutos para comer em pé no próprio canavial. Sob olhar atento dos feitores. Quem tentasse descansar um pouco mais recebia pontapé e xingamentos. Vocês comem melhor que muito homem livre por aí”, provocava João Cascalho, mastigando um pedaço generoso de carne assada que trouxera de casa. Deviam agradecer ao patrão por essa mordomia.
Os feitores riam da própria piada, enquanto os escravizados engoliam a comida seca e o orgulho ferido. À tarde, o trabalho continuava até o sol se por completamente. Só então os escravizados eram liberados para voltar a cenzalas, onde recebiam mais um pedaço de carne seca, feijão aguado e farinha para a janta.
Depois disso, restavam apenas algumas horas de descanso antes que tudo recomeçasse no dia seguinte. Mas naquela noite de junho, enquanto os feitores se reuniam na casa de Moenda para beber cachaça e comemorar mais um dia de trabalho bem feito, três escravizados se encontravam em segredo nos fundos da cenzala.
Benedito Angola, Maria Quitéria e Joaquim Minas sabiam que chegará a hora de transformar toda aquela raiva acumulada em ação. O plano que vinham amadurecendo há meses finalmente seria colocado em prática. As conversas secretas começaram no inverno de 1853, quando Maria Quitéria perdeu uma das crianças que ajudara a trazer ao mundo.
A menina de apenas 8 anos morreu depois de apanhar tanto do feitor Chico Preto que não conseguiu mais se levantar. Bateu na criança como se fosse homem feito. Contou uma das mulheres que presenciou a surra. Dizia que era para ensinar desde cedo quem mandava aqui. Foi naquela noite, velando o corpinho da menina num esteira velha, que Maria Quitéria jurou para si mesma que aquilo não ficaria sem resposta.
Esses homens vão pagar por cada gota de sangue inocente que derramaram”, murmurou ela enquanto enxugava as lágrimas silenciosas que escorriam pelo rosto. Benedito Angola conhecia bem aquela dor. 30 anos antes, quando ainda era menino, viu sua mãe morrer depois de ser estuprada por um feitor. O homem nunca foi punido, pelo contrário, ainda ganhou elogios do patrão por manter a ordem na cenzala.
Desde então, Benedito carregava no peito uma sede de vingança que só crescia com os anos. Joaquim Minas chegará ao Engenho Velho em 1850, depois de ser vendido por um comerciante de São Luís. Era ferreiro habilidoso e logo foi designado para cuidar das ferramentas e máquinas do engenho.
Isso lhe dava acesso a lugares onde outros escravizados não podiam entrar, especialmente a casa de Moenda, onde ficavam as grandes engrenagens que trituravam a cana. O primeiro encontro secreto aconteceu numa noite de lua nova, quando a escuridão oferecia proteção contra olhares curiosos. Os três se reuniram atrás do curral de bois, longe das cenzalas e da Casagrande.
Maria Quitéria foi direta ao assunto. Não aguento mais ver nosso povo sofrer nas mãos desses animais. Tem que ter um jeito de dar o troco. Jeito tem, respondeu Joaquim Mina, olhando ao redor para ter certeza de que estavam sozinhos. Mas tem que ser coisa bem planejada. Esses feitores são 16 homens armados.
Se errarmos, morrem não só nós três, mas todo mundo aqui. Benedito Angola concordou. Tem razão. Mas também não podemos ficar só esperando que as coisas melhorem sozinhas. Esses demônios cada dia inventam maldade nova. Ele contou então sobre uma conversa que ouvirá entre dois feitores, planejando um castigo especial para um grupo de escravizados que tinham sido flagrados tentando pescar no rio próximo.
Durante os meses seguintes, os três começaram a observar tudo com mais atenção. Estudaram a rotina dos feitores, os horários em que ficavam juntos, os momentos de maior vulnerabilidade. Descobriram que toda sexta-feira, depois do trabalho, os 16 homens se reuniam na casa de moenda para beber cachaça e contar vantagem das crueldades que haviam cometido durante a semana.
“É como se fosse festa para eles”, observou Maria Quitéria, que às vezes era chamada para levar água ou comida para os feitores durante essas reuniões. Ficam lá dentro bebendo e rindo das nossas desgraças. Alguns até imitam o jeito que a gente grita quando apanha.
A casa de Moenda era um prédio grande, construído em pedra e madeira, com apenas duas portas de entrada e janelas pequenas e altas. Lá dentro ficavam as enormes rodas de madeira e ferro que esmagavam a cana, movidas pela força de bois e escravizados. Durante a noite, as máquinas paravam, mas o prédio continuava sendo usado pelos feitores como local de encontro.
Joaquim Mina, que conhecia cada parafuso daquelas máquinas, começou a reparar em detalhes que poderiam ser úteis. As portas são pesadas, mas não tem tranca por dentro”, explicou ele numa das reuniões secretas. E tem muito bagaço seco guardado ali que pega fogo fácil. Tem também os taxos grandes onde ferve o caldo da cana. Pouco a pouco, o plano foi ganhando forma.
Não seria apenas uma vingança, seria uma lição que ecoaria por todo o Maranhão. Os feitores do engenho velho descobririam na própria pele o que significava sofrer sem poder escapar. Outros escravizados começaram a perceber as conversas sussurradas entre os três líderes. Alguns se aproximaram oferecendo ajuda.
Outros preferiram ficar de fora por medo das consequências. “Quem quiser participar participa”, decidiu Benedito Angola. “Quem não quiser não atrapalha, mas ninguém pode saber de nada antes da hora”. Maria Quitéria aproveitava sua posição de parteira para circular entre as cenzalas e sondar discretamente o humor dos companheiros. descobriu que quase todos guardavam alguma mágoa especial contra os feitores..

Tem mãe aqui que perdeu filho, pai que viu filha ser estuprada, gente que apanhou até desmaiar por motivo nenhum, relatou ela. Todo mundo tá cansado, mas todo mundo tem medo também. O medo era justificado. Qualquer tentativa de rebelião que falhasse resultaria em castigos ainda piores para todos os escravizados. Alguns poderiam ser vendidos para outras fazendas, separados para sempre de suas famílias.
Outros poderiam simplesmente ser mortos como exemplo. Mas havia também o medo do lado dos feitores, embora eles se esforçassem para não demonstrar. Notícias de revoltas em outros engenhos chegavam de vez em quando, trazidas por viajantes ou comerciantes. Todos sabiam da revolta dos maleis na Bahia 20 anos antes e de outras tentativas de insurreição que haviam acontecido pelo Nordeste.
“Ess feitores sabem que um dia a conta pode chegar”, observou Joaquim Mina. Por isso são tão violentos, querem nos quebrar antes que a gente se organize. Era exatamente por isso que o plano precisava ser perfeito. Uma única chance, sem margem para erro. As semanas passaram e junho chegou com seu friozinho de inverno maranhense. Era a época da moagem da cana, quando o trabalho ficava ainda mais pesado e os feitores ainda mais exigentes.
O prazo estava se esgotando. Se não agissem logo, teriam que esperar até a próxima safra. Na última reunião secreta, antes da execução do plano, os três líderes fizeram os acertos finais. Sexta que vem é a Lua Nova de novo, disse Maria Quitéria. Noite escura, igual a gente precisa. Joaquim Mina confirmou que conseguirá reunir todo o material necessário.
Óleo de mamona, panos velhos, cordas e as chaves que abriam os depósitos onde ficava guardado o material inflamável. Depois que começar, não tem mais volta. Alertou Benedito Angola. Quem tiver dúvida, melhor desistir agora. Mas nenhum dos três demonstrou hesitação. 30 anos de humilhação era um tempo suficiente para qualquer dúvida desaparecer.
Naquela semana, uma estranha calma pairou sobre o engenho velho. Os escravizados trabalhavam em silêncio, como sempre, mas havia algo diferente no ar, uma tensão que os próprios feitores começaram a perceber. “Essa negrada tá muito quieta”, comentou João Cascalho com os colegas. Quando ficam assim, é sinal de que estão aprontando alguma. Mas os feitores estavam acostumados demais com sua própria autoridade para levar a sério qualquer ameaça.
Afinal, o que poderiam fazer alguns escravizados desarmados contra 16 homens com chicotes, facas e espingardas? Era essa arrogância que selaria o destino de todos eles. A sexta-feira chegou com céu nublado e vento frio cortando os canaviais. Durante todo o dia, Benedito Angola, Maria Quitéria e Joaquim Mina trabalharam normalmente, sem dar sinal algum do que estava para acontecer.
Apenas trocavam olhares rápidos quando se cruzavam pelos caminhos do engenho, confirmando que tudo continuava conforme planejado. Os feitores, como sempre, passaram o dia distribuindo ordens e castigos. João Cascalho chicoteou um rapaz que considerou lento demais no corte da cana. Porfío obrigou uma mulher grávida a carregar feixes pesados, mesmo ela alegando dor na barriga.
Manuel surrador quebrou três dentes de um velho que usou pedir um gole de água extra. Mais um dia produtivo”, comentou Chico Preto com os colegas na hora do almoço. “Essa safra vai dar muito lucro pro patrão.” Os feitores riam e faziam aposta sobre qual deles conseguiria extrair mais trabalho dos escravizados durante a tarde.
Quando o sol começou a se pôr, a movimentação habitual tomou conta do engenho. Os escravizados foram liberados do canavial e seguiram para suas últimas tarefas do dia. Uns cuidaram dos animais, outros ajudaram na cozinha. Alguns foram destacados para a limpeza das máquinas na casa de moenda.
Joaquim Mina estava entre os responsáveis pela manutenção das engrenagens. Como todos os dias, ele verificou se as correias estavam bem ajustadas, se os eixos precisavam de graxa, se havia algum problema nas rodas dentadas. Os feitores que supervisionavam o trabalho nem prestavam muita atenção, confiavam na habilidade do ferreiro e sabiam que ele não usaria sabotar equipamento tão valioso.
Foi durante essa inspeção rotineira que Joaquim conseguiu esconder em pontos estratégicos da casa de moenda os materiais que seriam usados mais tarde. Panos embebidos em óleo de mamona, cordas secas, punhados de bagaço de cana que pegaria fogo rapidamente.
Tudo foi distribuído de forma que não chamasse atenção, mas que estivesse ao alcance quando chegasse o momento. Às 7 horas da noite, como sempre acontecia nas sextas-feiras, os 16 feitores começaram a se reunir na casa de moenda. Cada um trouxe sua garrafa de cachaça e alguma comida para acompanhar a bebida. “Hoje vamos comemorar em grande estilo”, anunciou João Cascalho, que trazia duas garrafas em vez de uma.
“E por que não?”, respondeu por filho, já destampando sua bebida. Essa semana foi boa. A negrada trabalhou direito. Não teve confusão. Ninguém tentou fugir. Parece que finalmente entenderam quem manda aqui. Os outros feitores concordaram, levantando as garrafas num brinde à própria eficiência.
Do lado de fora, escondidos na escuridão entre os galpões, Benedito Angola e Maria Quitéria observavam os homens entrando na casa de moenda. 16. Contou ela baixinho. Todos entraram. Era o sinal que estavam esperando quando todos os feitores estivessem juntos no mesmo lugar, vulneráveis por causa da bebida e distraídos pelas próprias conversas. As horas passaram devagar.
Lá dentro, as vozes foram ficando mais altas conforme a cachaça fazia efeito. Os feitores contavam casos de violência, como se fossem façanhas heroicas, riam das expressões de dor dos escravizados, planejavam castigos ainda mais criativos para a semana seguinte. Sabe o que eu fiz com aquele velho teimoso ontem? Gabava-se Manuel surrador, já com a língua meio presa pela bebida.
Amarrei ele no tronco e mandei os outros escravos passarem perto, um por um, para ver o que acontece com quem não obedece direito. Isso é pouco, retrucou o Chico Preto. Da próxima vez que pegar algum fugitivo, vou fazer questão de quebrar as duas pernas antes de trazer de volta.
Aí, quero ver se tem coragem de tentar de novo. As gargalhadas ecoaram pela casa de moenda, misturadas ao barulho das garrafas batendo na mesa de madeira. Por volta das 10 horas da noite, Joaquim Mina deu sinal combinado, uma pequena luz de lamparina piscando três vezes na janela da oficina onde guardava suas ferramentas.
Benedito Angola e Maria Quitéria viram o sinal e se movimentaram silenciosamente na direção da casa de Moenda. Outros cinco escravizados se juntaram a eles, homens e mulheres que haviam decidido participar da vingança, mesmo sabendo dos riscos. Cada um tinha suas próprias razões.
Filhos mortos, mulheres estupradas, irmãos vendidos para longe, anos de humilhação acumulada. Todos se moviam como sombras, evitando fazer qualquer ruído que pudesse alertar os feitores. O primeiro passo era garantir que ninguém escaparia. A casa de moenda tinha duas portas, a principal que dava para o terreiro central do engenho, e uma lateral menor, que era usada para transportar equipamentos.
Benedito Angola e dois companheiros ficaram responsáveis por bloquear a porta principal. Maria Quitéria e outros dois cuidariam da saída lateral. As portas eram pesadas, feitas de madeira grossa, mas não tinham trancas internas. Afinal, quem imaginaria que alguém tentaria trancar os feitores por dentro? Os escravizados haviam preparado grossas através de madeira que se encaixariam nos trincos externos, impossibilitando que as portas fossem abertas de dentro. Joaquim Mina tinha tarefa mais arriscada, entrar na casa de moenda pela
janela dos fundos, onde ficava um depósito de ferramentas, e começar o incêndio por dentro. Se fosse descoberto antes de completar a missão, todo o plano falharia e as consequências seriam terríveis para todos. Agora sussurrou Benedito Angola em movimento coordenado.
As travas foram colocadas nas portas enquanto Joaquim Mina subia pela janela dos fundos. Do lado de dentro chegavam as vozes embriagadas dos feitores que continuavam bebendo e contando histórias alheios ao que estava acontecendo. Joaquim rastejou pelo depósito até alcançar a sala principal, onde os 16 homens estavam sentados ao redor de uma grande mesa.
A luz fraca das lamparinas criava sombras dançantes nas paredes de pedra. O ferreiro conseguiu chegar até os pontos onde havia escondido o material inflamável sem ser notado. Os feitores estavam ocupados demais com suas bebedeiras. Comos precisos, Joaquim começou a espalhar óleo de mamona pelos panos que estavam escondidos embaixo de pilhas de bagaço.
O cheiro forte do óleo se misturou aos outros odores da casa de moenda. Suor, cachaça, fumaça das lamparinas. Ainda não era possível perceber que algo diferente estava acontecendo. O momento crítico chegou quando Joaquim precisou acender o primeiro foco de incêndio. Usou uma das próprias lamparinas dos feitores, pegando-a com cuidado quando os homens estavam distraídos com uma discussão sobre qual deles era mais temido pelos escravizados. A primeira chama lambeu o bagaço embebido em óleo e se espalhou mais rápido do que Joaquim esperava. Em
poucos segundos, várias pilhas de material começaram a pegar fogo simultanearmente, criando um círculo de chamas ao redor da mesa, onde os feitores estavam sentados. “Que diabos?”, gritou João Cascalho, sendo primeiro a notar as chamas. Mas quando ele e os outros tentaram se levantar, perceberam que estavam cercados.
O fogo se alastrava pelas paredes, subia pelas vigas do teto, bloqueava todas as saídas. “As portas! Corram para as portas!”, berrou por filho, jamais sóbro pelo susto. Mas quando os primeiros feitores tentaram sair, descobriram que as portas não abriam. Empurraram com força, chutaram, gritaram por socorro. Nada funcionava.

Do lado de fora, Benedito Angola e seus companheiros ouviam os gritos desesperados e mantinham as través firmes no lugar. Agora vocês sabem como é não ter para onde correr”, murmurou Maria Quitéria, lembrando de todas as vezes em que havia presenciado escravizado sendo encurralados pelos mesmos homens que agora imploravam por misericórdia.
O fogo crescia rapidamente, alimentado pelo bagaço seco, pelas vigas de madeira velha e pelo próprio óleo de mamona que Joaquim continuava derramando de pontos estratégicos. A temperatura dentro da casa de moenda subiu tanto que os homens começaram a se desesperar de verdade. Por favor, nós temos família. Temos filhos”, gritava Chico Preto, batendo na porta com força cada vez menor.
Mas os escravizados do lado de fora conheciam bem aquela súplica. Haviam ouvido a mesma coisa de suas próprias bocas durante anos de tortura e nunca houve piedade. Joaquim Mina conseguiu escapar pela mesma janela por onde havia entrado, mas não antes de garantir que o incêndio estava completamente fora de controle.
Quando se juntou aos companheiros do lado de fora, as chamas já lambiam o teto e a fumaça escapava por todas as frestas. Está feito”, disse ele simplesmente. “Agora é só esperar a justiça ser cumprida”. E ali ficaram os oito escravizados observando em silêncio, enquanto a casa de moenda se transformava no túmulo dos 16 homens que haviam transformado suas vidas no inferno.
O desespero dentro da casa de moenda chegou ao limite quando os feitores perceberam que não conseguiriam escapar pelas portas. O calor estava ficando insuportável, a fumaça dificultava a respiração e as chamas bloqueavam qualquer tentativa de fuga. João Cascalho, mesmo sendo líder do grupo, foi o primeiro a entrar em pânico total. “Maldita seja! Como isso foi acontecer?”, gritava ele, tentando quebrar a porta principal com pedaço de madeira que conseguirá arrancar de uma mesa. “Tem alguém do lado de fora?” “Eu sei que tem.
” Mas suas forças já estavam diminuindo por causa da fumaça e os golpes ficavam cada vez mais fracos. Porfírio tentou uma abordagem diferente. Gritou pela janela alta, esperando que alguém ouvisse e viesse ajudar. Socorro, fogo, estamos presos aqui dentro. Sua voz euou pelo terreiro do engenho, mas os únicos que ouviram foram os próprios escravizados responsáveis pelo incêndio, que permaneceram imóveis em seus postos.
Do lado de fora, Benedito Angola sentia uma satisfação amarga ao ouvir aqueles gritos de desespero. Lembrava-se de sua mãe gritando da mesma forma quando foi atacada pelo feitor 30 anos antes. Lembrava-se de dezenas de companheiros que imploraram piedade e nunca receberam. “Agora vocês sabem como é”, murmurou para si mesmo.
Manuel Surrador, conhecido por sua força física, tentou derrubar uma das paredes de pedra com as próprias mãos. socava e chutava as pedras até os punhos sangrarem, mas a construção sólida não cedia. O desespero fez tentar o impossível, escalar as paredes internas para alcançar as janelas altas, mas a fumaça o derrubava sempre que tentava subir.
“Nós vamos morrer aqui”, gemeu Chico Preto, que já estava no chão, tentando respirar o pouco ar limpo que restava perto do piso. Vamos morrer queimados como animais. Era exatamente assim que muitos escravizados haviam morrido por causa dos castigos excessivos. E agora a situação estava invertida.
Maria Quitéria, do lado de fora, ouvia cada palavra e sentia uma mistura de justiça e dor. Como parteira, ela respeitava a vida, mas também sabia que algumas vidas causavam tanto sofrimento que precisavam ser interrompidas. “Quantas crianças vocês mataram?”, perguntou em voz baixa, sabendo que não seria ouvida. “Quantas mães choraram por causa de vocês? Dentro da casa de Moenda, o fogo havia alcançado pontos críticos.
As vigas do teto começaram a ceder, criando um risco ainda maior para os homens presos. Pedaços de madeira em chamas caíam sobre eles, queimando roupas e pele. O cheiro de carne humana queimada se misturou aos outros odores do incêndio. Joaquim Mina observava sua obra com satisfação profissional.
Como ferreiro, ele conhecia o comportamento do fogo e sabia exatamente como fazer para que não houvesse escape. Cada detalhe havia sido planejado. A disposição do material inflamável, os pontos de ignição, a direção das chamas. Era um trabalho técnico executado com perfeição. “Por favor!”, gritou uma voz que já não era possível identificar. Nós podemos mudar, podemos tratar vocês melhor.
Mas eram palavras vazias, pronunciadas apenas pelo desespero do momento. Os escravizados sabiam que homens como aqueles não mudavam, apenas ficavam piores quando tinham a oportunidade. As tentativas de escape foram ficando mais desesperadas e desorganizadas. Alguns feitores tentaram cavar um buraco no chão com as próprias mãos.
Outros quebraram garrafas de cachaça na esperança de usar os cacos como ferramentas para arranhar as paredes. Tudo em vão. A construção era sólida demais e o tempo estava se esgotando rapidamente. Benedito Angola lembrou-se de uma conversa que tivera com sua mãe pouco antes dela morrer. Um dia, filho, ela havia dito: “Os que fazem o mal vão pagar por tudo. Pode demorar, mas a justiça sempre chega”.
Naquele momento, ele sentia que a profecia materna estava se cumprindo. O calor dentro da casa de moenda estava tão intenso que começou a derreter alguns objetos de metal. As fivelas dos cintos dos feitores, as moedas em seus bolsos, até mesmo os botões das roupas começaram a amolecer e grudar na pele.
Era uma tortura que eles próprios haviam aplicado em escravizados, usando ferro em brasa para marcar e punir água, suplicava alguém com a voz já rouca pela fumaça. Por amor de Deus, um pouco de água. Mas não havia água suficiente no mundo para apagar aquele incêndio, nem um fogo físico, nem o fogo da vingança que queimava no coração dos escravizados. Maria Quitéria pensou nas dezenas de partos que havia assistido naquele engenho.
Quantas vezes segurou bebês recém-nascidos, sabendo que eles cresceriam para sofrer nas mãos daqueles mesmos homens? Quantas mães ela consolou depois que seus filhos foram vendidos ou mortos? Agora não vão fazer mais mal a ninguém, pensou ela. Os gritos dentro da casa de moenda foram diminuindo gradualmente.
Primeiro cessaram os pedidos de socorro mais articulados, depois os gemidos de dor, por fim até mesmo os ruídos de movimento. O silêncio que se instalou era quebrado apenas pelo crepitar das chamas e pelo desabamento ocasional de alguma viga. Joaquim Mina conferiu mais uma vez se as travessés das portas estavam bem firmes.
Era importante que nenhum corpo fosse encontrado do lado de fora. A versão oficial precisava ser a de um acidente durante a bebedeira. Morreram todos queimados por descuido próprio, seria a explicação dada às autoridades. Quando finalmente o fogo começou a diminuir por falta de material combustível, os oito escravizados permaneceram em vigília.
Era preciso ter certeza de que nenhum dos feitores havia sobrevivido para contar o que realmente aconteceu. A operação só seria completa quando todos os 16 homens estivessem mortos. “Está terminado”, disse Benedito Angola quando as últimas chamas se extinguiram e só restaram brasas fumegantes. 30 anos esperando por este momento.
Ele sentia um alívio profundo, como se um peso imenso tivesse sido tirado de seus ombros. Os escravizados se dispersaram silenciosamente, voltando para suas cenzalas, como se nada tivesse acontecido. Pela manhã, quando alguém descobrisse os corpos, eles estariam dormindo em suas esteiras, cansados de mais um dia de trabalho pesado.
Ninguém suspeitaria que tinham acabado de executar a vingança mais perfeita da história do engenho velho. O amanhecer trouxe consigo o cheiro de cinzas e carne queimada. A casa de moenda não passava de ruínas fumegantes e dentro dela jaziam os restos mortais de 16 homens que haviam vivido de causar sofrimento.
A justiça havia sido feita não pelos tribunais ou pelas leis, mas pelas próprias mãos daqueles que mais sofreram. O sino que tocava às 4 da madrugada naquela manhã de sábado ecoou diferente pelo engenho velho. Era um som mais solitário, mais grave, como se até o bronze pressentisse que algo terrível havia acontecido durante a noite.
Os escravizados acordaram como sempre, mas havia uma tensão no ar que todos conseguiam sentir, embora poucos soubessem explicar o motivo. Benedito Angola abriu os olhos antes mesmo do sino tocar, como sempre fazia. Mas desta vez não foi o hábito que o acordou, foi a satisfação profunda de saber que nunca mais ouviria a voz de João Cascalho gritando ordens cruéis.
Olhou ao redor da cenzala e viu que alguns companheiros também estavam acordados, olhando para o teto com expressões pensativas. Maria Quitéria levantou-se devagar, sentindo nas costas o peso dos anos de trabalho forçado, mas também uma leveza nova no peito.
Pela primeira vez em décadas, acordava no mundo onde, por filho não existia mais, onde Manuel Surrador nunca mais quebraria os dentes de um velho indefeso, onde Chico Preto jamais voltaria a matar uma criança inocente. O primeiro sinal de que algo estava errado veio quando Cino parou de tocar e nenhum grito de feitor ecuou pelo terreiro. Os escravizados esperaram, acostumados com a rotina brutal. Mas o silêncio se prolongou além do normal.
Alguns começaram a sussurrar entre si, perguntando se deveriam sair da cenzala sem ordem expressa. Joaquim Mina foi um dos primeiros a se levantar. Como ferreiro, ele sempre tinha permissão para circular mais livremente pelo engenho, verificando equipamentos e ferramentas.
Saiu da cenzala tentando parecer natural, embora soubesse exatamente o que encontraria quando chegasse perto da casa de moenda. “Cadê os feitores?”, perguntou uma velha escravizada. estranhando silêncio em comum. Nunca vi eles demorarem tanto para começar a gritar. Outros concordaram, mas ninguém ousava investigar por conta própria.
Décadas de condicionamento não se apagavam de uma noite para outra. Foi então que o grito eou pelo engenho. Mas não era grito de feitor dando ordens. Era um berro de horror puro vindo da direção da casa de Moenda. Um dos escravizados que cuidava dos bois havia descoberto as ruínas fumegantes e os corpos queimados lá dentro.
Meu Deus do céu, eles estão todos mortos, queimados, todos os feitores”, gritava o homem, correndo pelo terreiro como louco. A casa de moenda pegou fogo, não sobrou nenhum. A notícia se espalhou como raio entre os escravizados, causando reações contraditórias: espanto, medo, incredulidade. Em alguns rostos mais discretos, uma satisfação mal disfarçada.
Benedito Angola fingiu surpresa junto com os outros, mas por dentro sentia uma alegria selvagem. “Será que foi acidente?”, perguntou ele em voz alta, sabendo muito bem que não havia sido. “Como é que pegou o fogo numa hora dessas?” Outros escravizados fizeram perguntas similares, todos representando o papel de quem nada sabia.
Maria Quitéria juntou-se ao grupo que correu para ver as ruínas. Quando chegou perto da casa de Moenda e sentiu o cheiro de carne queimada, teve que fazer um esforço para não sorrir abertamente. “Que tragédia”, murmurou ela com uma expressão de falsa piedade. “Coitados, morreram todos! A descoberta dos corpos criou um alvoroço enorme no engenho. Alguns escravizados correram para avisar na casa grande.

Outros ficaram parados observando as ruínas, tentando entender como aquilo havia acontecido. O choque era genuíno. Mesmo aqueles que odiavam os feitores não imaginavam que todos morreriam de uma só vez. Joaquim Mina aproximou-se das ruínas como se fosse fazer uma inspeção técnica. Parece que o fogo começou em vários pontos ao mesmo tempo, observou ele, fingindo analisar os escombros.
Deve ter sido a cachaça. Derramou e pegou fogo nas lamparinas. Era explicação perfeita. Todos sabiam que os feitores bebiam muito durante suas reuniões de sexta-feira. A primeira autoridade a chegar foi o capitão da milícia local, um homem gordo e preguiçoso chamado Tenente Borba.
Ele vinha acompanhado de dois soldados e parecia mais incomodado por ter que trabalhar num sábado do que preocupado com a tragédia. “Que confusão é essa?”, resmungou ele, descendo do cavalo com dificuldade. “Os feitores, seu tenente, todos morreram queimados”, explicou um dos escravizados mais velhos que havia sido designado como porta-voz improvisado. “A gente encontrou eles assim de manhã. A casa de moenda virou cinza.
” O tenente Borba olhou as ruínas com desinteresse, como se mortes de feitores fossem ocorrência rotineira. “Onde tá o patrão desse lugar?”, perguntou o tenente. Tem que avisar o coronel Henrique do que aconteceu aqui. Mas todos sabiam que o proprietário estava em São Luís e demoraria pelo menos dois dias para chegar ao engenho.
Enquanto isso, o engenho velho ficaria sem como, numa situação sem precedentes. Benedito Angola aproveitou a confusão para observar discretamente a cena. Via soldados caminhando entre os escombros, pegando pedaços de ossos e metal derretido, tentando identificar os corpos. 16 homens, dizia um deles, todos viraram carvão. Que morte horrível.
Mas para Benedito não havia nada de horrível naquela justiça. Maria Quitéria notou que alguns escravizados pareciam genuinamente abalados com a morte dos feitores. Décadas de opressão haviam criado uma dependência psicológica estranha. Alguns cativos não conseguiam imaginar a vida sem seus torturadores.
E agora, o que vai ser da gente? perguntava uma mulher com medo real na voz. Vai aparecer outros feitores respondeu Joaquim Mina, tentando soar filosófico. Patrão não deixa engenho sem comando, mas talvez os próximos sejam melhores que esses. Era uma esperança van. Todos sabiam que feitores eram escolhidos justamente pela capacidade de serem cruéis.
O tenente Borba fez algumas perguntas de rotina, mais para cumprir protocolo do que por real interesse em investigar. Alguém viu como começou o fogo? Silêncio geral. Alguém ouviu alguma coisa durante a noite? Mais silêncio. Vocês não sabem de nada, né? Os escravizados balançaram a cabeça negativamente, mantendo a expressão de ignorância total. “Deve ter sido descuido mesmo,” concluiu o tenente, querendo encerrar logo aquele assunto.
Beberam demais, derrubaram lamparina, fogo se espalhou. Acontece. Era exatamente a versão que os executores da vingança queriam que fosse aceita como oficial. Durante todo o dia, vizinhos e curiosos vieram ver as ruínas do que havia sido a casa de moenda do Engenho velho. A notícia se espalhou rapidamente pela região.
16 feitores mortos numa só noite, queimados vivos, sem nenhum sobrevivente. Era um acontecimentos sem precedentes na história da escravidão maranhense. Benedito Angola ouviu os comentários dos visitantes com atenção disfarçada. Que tragédia”, diziam alguns. “Que azar”, comentavam outros. “Mas ele também percebeu sussurros diferentes. “Bem feito”, murmurava comerciante.
“Esses feitores eram animais mesmo.” Concordavam fazendeiro vizinho. Maria Quitéria aproveitou o movimento para circular entre os escravizados, observando reações e medindo o humor geral. Descobriu que a maioria estava dividida entre o medo do que viria depois e o alívio secreto pela morte dos torturadores.
“Pelo menos não vamos mais ouvir a voz do João Cascalho”, sussurrou uma mulher no ouvido dela. Joaquim Mina passou o dia verificando outros equipamentos do engenho, mantendo sua rotina normal, mas por dentro sentia uma satisfação profissional pelo trabalho bem executado. O incêndio havia sido perfeito.
consumiu tudo que devia consumir, não se espalhou para outras construções e não deixou evidências de sabotagem. Quando a noite chegou, o engenho velho estava mergulhado numa atmosfera surreal. Pela primeira vez em décadas, não havia feitores gritando ordens, aplicando castigos ou aterrorizando os escravizados.
Era um silêncio estranho, quase perturbador para quem estava acostumado com a rotina de violência. Na cenzala dos homens, as conversas foram diferentes naquela noite. Alguns especulavam sobre quem seriam os próximos feitores, outros se perguntavam se o patrão venderia o engenho. Alguns até arriscavam sonhar com a possibilidade de alforria, mas todos falavam baixo, como se os mortos pudessem ouvir.
Dizem que alma de gente ruim não descansa comentou um velho escravizado. Será que os espíritos dos feitores vão ficar assombrando por aqui? Era uma preocupação real. A religiosidade africana e o catolicismo se misturavam criando medos e esperanças complexos. Benedito Angola deitou-se na esteira velha, sentindo-se em paz pela primeira vez em 30 anos.
Sabia que outros feitores viriam, que o sofrimento continuaria, mas pelo menos aqueles 16 homens nunca mais fariam mal a ninguém. Era uma vitória pequena, mas significativa. Maria Quitéria fechou os olhos, lembrando-se das crianças que havia ajudado a trazer ao mundo e que haviam morrido nas mãos dos feitores.
“Agora vocês podem descansar em paz”, murmurou ela, dirigindo-se aos pequenos espíritos. Seus assassinos pagaram o preço. Joaquim Mina adormeceu pensando na precisão técnica da operação. Como ferreiro, ele sabia que um trabalho bem feito era sempre motivo de orgulho e aquele havia sido o melhor trabalho de sua vida.
16 vidas cruéis extintas numa única noite, sem falhas, sem sobreviventes, sem evidências. O engenho velho adormeceu naquela noite num silêncio que não conhecia há décadas. Era o silêncio da justiça cumprida, da vingança satisfeita, da esperança renovada. Amanhã seria outro dia com novos desafios e novos sofrimentos, mas pelo menos seria um dia sem João Cascalho, sem Porfírio, sem Manuel Surrador, sem Chico Preto e sem os outros 12 demônios que haviam transformado aquele lugar no inferno.
A casa de Moenda permaneceria em ruínas por muito tempo, como o memorial involuntário da noite, em que os oprimidos se tornaram executores de sua própria justiça. E sempre que alguém passasse por ali, lembraria da história dos 16 feitores que foram queimados vivos por sua própria crueldade.
O coronel Henrique de Vasconcelos chegou ao Engenho Velho na segunda-feira seguinte, trazendo consigo um ar de autoridade ofendida e uma comitiva de homens armados. A notícia da morte de seus 16 feitores havia chegado a São Luís no domingo, causando alvoroço entre os proprietários rurais da região. Nunca se ouvirá falar de uma tragédia daquelas proporções.
Como é que isso foi acontecer? Foi a primeira pergunta do coronel ao descer da carruagem e ver as ruínas ainda fumegantes da casa de moenda. 16 homens experientes morrerem queimados como ratos numa ratoeira. Sua voz tremia de raiva e incredulidade. A morte em massa de seus empregados representava não apenas uma perda pessoal, mas um prejuízo financeiro enorme.
Benedito Angola estava entre os escravizados que se reuniram para receber o patrão. Observou discretamente expressão de choque e fúria no rosto do coronel e sentiu uma satisfação maldosa. Agora o senhor sabe como é perder gente importante de uma vez só”, pensou ele, lembrando de todas as famílias escravas que haviam sido separadas por vendas e castigos.
O tenente Borba, que havia permanecido no engenho durante o fim de semana, aproximou-se do proprietário com ar de quem tinha mais notícias para dar. “Coronel, pela minha investigação, parece que foi mesmo acidente”, relatou ele, tirando um caderninho surrado do bolso. Os homens estavam bebendo como faziam toda sexta-feira. Deve ter derrubado lamparina. Fogo se espalhou rápido.
Acidente, repetiu coronel com desconfiança na voz. 16 homens armados, experientes, conhecedores de todos os perigos, morrem num acidente de lamparina. Ele caminhou entre as ruínas, chutando pedaços de madeira carbonizada e metal derretido. Isso não me cheira bem, tenente. Isso não me cheira nada bem.
Maria Quitéria, que estava na fila das mulheres, manteve expressão neutra enquanto ouvia a conversa. Por dentro, torcia para que a versão do acidente fosse aceita sem questionamentos. Se o coronel decidisse investigar a fundo com métodos de interrogatório que ela conhecia bem, alguns escravizados poderiam acabar confessando a verdade.
Joaquim Mina foi chamado para dar explicações técnicas sobre o estado dos equipamentos. “O senhor quer que eu olhe o que sobrou das máquinas?”, perguntou ele, fingindo solicitude profissional. Posso tentar descobrir se tinha algum defeito que causou incêndio. Era uma oferta arriscada, mas que poderia ajudar a consolidar a versão do acidente.
Quero sim, respondeu coronel, apontando para as ruínas. Examina tudo aí dentro. Se foi descuido dos feitores, problema deles. Mas se foi sabotagem. Ele não terminou a frase, mas todos entenderam a ameaça implícita. Sabotagem significaria castigos terríveis para todos os escravizados do engenho. Joaquim passou uma hora fuçando entre os escombros, under os olhos atentos do coronel e dos soldados.
Encontrou pedaços das engrenagens, restos de ferramentas, fragmentos de garrafas de cachaça. “Pelo que eu tô vendo, coronel, as máquinas estavam funcionando normal”, reportou ele. “O fogo deve ter começado mesmo por descuido com a bebida”. Mas o coronel Henrique não era homem de aceitar explicações simples para problemas complexos.
Havia construído sua fortuna sendo desconfiado e cruel, e a morte simultânea de todos os seus feitores lhe parecia suspeita demais para ser mero acidente. “Vou interrogar essa negrada uma por uma”, anunciou ele. “Alguém deve ter visto alguma coisa”. Benedito Angola senti um frio na espinha ao ouvir aquelas palavras.
Conhecia os métodos de interrogatório do patrão: chicotadas, ferro quente, privação de comida e água até a pessoa falar o que queriam ouvir. Se alguém fraquejasse sob tortura, todos os envolvidos na vingança seriam descobertos e morreriam de forma ainda mais horrível. Os interrogatórios começaram na terça-feira.
O coronel mandou montar um tronco no meio do terreiro e começou a chamar os escravizados um por um. Vou descobrir a verdade”, prometia ele antes de cada sessão. “Se alguém tiver envolvimento com essa tragédia, vai pagar caro.” As chicotadas ecoavam pelo engenho, misturadas com gritos de dor e protestos de inocência. Maria Quitéria foi uma das primeiras a ser interrogada.
Amarrada no tronco, com as costas expostas para o chicote, ela manteve a versão que haviam combinado. Estava dormindo na cenzala quando o incêndio aconteceu. Não viu nada, não ouviu nada, não sabia de nada. Levou 20 chibatadas, mas não mudou a versão. Essa velha é teimosa. Resmungou o coronel depois de libertaria Quitéria. Mas todo mundo tem seu limite. Se ela souber de alguma coisa, vai acabar falando. Era uma ameaça velada.
Os interrogatórios continuariam até que alguém confessasse, mesmo que a confissão fosse inventada apenas para fazer a tortura parar. Joaquim Mina passou pelo interrogatório na quarta-feira. Como ferreiro, ele era considerado suspeito especial.
Tinha acesso a todas as áreas do engenho e conhecimentos técnicos que poderiam ser usados para sabotagem. Levou 30 chibatadas e uma sessão com ferro quente nas costas, mas manteve a história. Estava dormindo, não sabia de nada, foi surpresa total. Esse aí também não falou nada de útil, comentou o tenente Borba depois do interrogatório de Joaquim. Ou ele não sabe mesmo de nada, ou é mais duro de quebrar do que a gente pensava.

O coronel franziu o senho, frustrado com a falta de resultados. Estava torturando escravizados há três dias e não conseguirá uma confissão sequer. Benedito Angola foi interrogado na quinta-feira. Era considerado outro suspeito especial por ser um dos líderes informais entre os escravizados. O coronel reservou para ele um tratamento particularmente brutal.
50 chibatadas, ferro quente nos braços e nas pernas, privação de água por 6 horas. Mas Benedito aguentou tudo sem confessar. Não sei de nada, senhor, repetia ele entre os gemidos de dor. Estava dormindo na cenzala, igual todo mundo. Quando acordei de manhã, os feitores já estavam todos mortos. Era uma versão simples e consistente, impossível de ser refutada sem evidências concretas.
Depois de uma semana de interrogatórios infrutíferos, o coronel começou a aceitar a possibilidade de que realmente tivesse sido um acidente. Havia torturado mais de 50 escravizados e nenhum confessar envolvimento com o incêndio. Ou essa negrada não sabe mesmo de nada, ou são todos mais resistentes do que eu imaginava?”, murmurou ele para o tenente Borba.
Pode ter sido acidente mesmo, coronel”, sugeriu o tenente, que estava cansado de presenciar tortura sem resultado. Os feitores bebiam muito toda sexta-feira. Uma hora tinha que dar problema. Era uma explicação conveniente para todos. O coronel podia culpar a irresponsabilidade dos próprios empregados mortos. A investigação foi oficialmente encerrada na sexta-feira seguinte, exatamente uma semana depois do incêndio.
O laudo final, assinado pelo tenente Borba, concluía que os 16 feitores haviam morrido em decorrência de acidente causado por descuido com fogo durante consumo excessivo de bebida alcoólica. Caso encerrado, Benedito Angola, Maria Quitéria e Joaquim Mina receberam a notícia do fim da investigação com alívio discreto. haviam resistido aos interrogatórios, mantido suas versões e conseguido proteger o segredo da vingança.
Os 16 feitores estavam mortos e enterrados, e ninguém jamais saberia que sua morte fora planejada e executada pelos próprios escravizados que torturavam. Agora preciso contratar feitores novos”, anunciou o coronel no sábado pela manhã, reunindo todos os escravizados no terreiro.
E quero deixar bem claro, qualquer problema, qualquer acidente, qualquer coisa estranha que acontecer daqui paraa frente, vocês vão pagar o preço. Entenderam? Todos balançaram a cabeça em concordância, mas alguns olhares se cruzaram discretamente. Os novos feitores chegaram na segunda-feira seguinte, seis homens jovens, vindos de outros engenhos da região, com fama de serem tão cruéis quanto seus predecessores mortos. “Ouvi falar do que aconteceu aqui”, disse o novo feitor MOR, um tal de Severino Couro.
“Mas comigo não vai ter moleza. Quero trabalho e disciplina”. Benedito Angola observou os novos torturadores com resignação. Sabia que o ciclo de violência recomeçaria, que novos sofrimentos viriam, que outras vinganças seriam necessárias, mas pelo menos havia provado que era possível se vingar. Os poderosos não eram invencíveis, os opressores não eram intocáveis.
Maria Quitéria voltou ao trabalho de parteira, sabendo que ajudaria outras crianças a nascer no mundo ainda cruel, mas onde pelo menos 16 demônios a menos vagavam pela Terra. Cada vitória é pequena pensava ela, mas todas juntas fazem a diferença. Joaquim Mina retomou seu trabalho na oficina, consertando ferramentas e máquinas, mas agora ele sabia que suas habilidades técnicas podiam ser usadas para fins mais nobres do que apenas manter funcionando os instrumentos da opressão.
“Se precisar de novo, estarei pronto”, prometeu a si mesmo. O engenho velho continuou funcionando, produzindo açúcar e sofrimento em proporções similares. Mas a história dos 16 feitores queimados vivos espalhou-se discretamente pela região, passando de boca em boca entre escravizados de outras fazendas.
Virou lenda, virou exemplo, virou esperança de que a justiça era possível. Anos depois, quando alguns dos protagonistas daquela vingança conseguiram aforria ou fugiram para quilombos, a história completa foi contada em detalhes. Benedito Angola, Maria Quitéria e Joaquim Mina entraram para o folclore da resistência escrava maranhense como símbolos de que os oprimidos podiam sim vencer seus opressores. A casa de moenda nunca foi reconstruída.
As ruínas permaneceram como lembrança daquela noite terrível e gloriosa quando a justiça dos escravizados falou mais alto que a lei dos senhores. E sempre que o novo feitor chegava ao Engênio Velho, alguém se encarregava de lhe contar a história dos 16 homens que foram queimados vivos por sua própria crueldade. Era um aviso e uma promessa.
No Engenho Velho, a crueldade excessiva tinha preço e esse preço podia ser cobrado quando menos se esperava. M.