(1899, Pará) O Horripilante Caso da Indígena Anahí

Atenção, bem-vindo a este percurso por um dos casos mais inquietantes registrados na história do Pará. Antes de iniciar, convido você a deixar nos comentários de onde está nos assistindo e a hora exata em que escuta esta narração. Interessa-nos saber até que lugares e em que momentos do dia ou da noite chegam estes relatos documentados.

Os rios do Pará guardam segredos que poucos ousam investigar. Em 1899, quando o Brasil ainda se adaptava aos primeiros anos como república, o território amazônico permanecia como um espaço de fronteira, onde a lei formal raramente alcançava. Nos arredores de Belém, às margens do rio Guamá, existia um pequeno assentamento conhecido como Vila Conceição, um lugar onde seringueiros, ribeirinhos, comerciantes e alguns remanescentes de tribos indígenas já deslocadas conviviam em um equilíbrio tão frágil quanto as embarcações que navegavam aquelas águas turvas. O caso que vamos narrar foi reconstruído

a partir de registros encontrados nos arquivos da antiga Secretaria de Segurança Pública de Belém. Cartas pessoais trocadas entre autoridades locais, relatos de missionários e um diário parcialmente preservado. Documentos que permaneceram guardados por décadas até serem encontrados durante uma reforma no prédio do Antigo Tribunal em 1964.

O que estes papéis revelam é uma história de silêncio, isolamento e a busca obstinada pela verdade que custou mais do que se poderia imaginar. Em julho de 1899, durante a estação menos chuvosa, um delegado chamado Augusto Mendonça foi designado para investigar o desaparecimento de uma jovem indígena conhecida como Anaí.

Conforme consta nos registros oficiais, ela trabalhava como doméstica na casa da família Albuquerque, proprietários de uma pequena área de extração de borracha. O caso poderia ter sido apenas mais um entre tantos outros desaparecimentos que ocorriam naquela região e época, rapidamente esquecido pelos registros oficiais, não fosse por um detalhe que intrigou as autoridades.

No mesmo dia em que Anaí desapareceu, o filho mais velho do Albuquerque, Rodrigo, também sumiu sem deixar vestígios. A primeira hipótese levantada pelas autoridades foi a fuga. Era comum que trabalhadores das propriedades rurais, especialmente aqueles em condições análogas à escravidão, como muitos indígenas se encontravam, tentassem escapar para outras regiões.

No entanto, algo não se encaixava nessa explicação. O delegado Mendonça, homem meticuloso, segundo descrições da época, notou que nenhum dos pertences pessoais de Rodrigo havia sido levado. Seu cavalo permanecia na propriedade, assim como todos os seus documentos e até mesmo o relógio de bolso que seu pai lhe presenteara no aniversário de 25 anos.

A família Albuquerque era composta por Jerônimo, o patriarca, homem de 58 anos. descrito como severo e reservado. Sua esposa Eleonora, de 46 anos, conhecida na região por seu trabalho junto aos missionários católicos. Rodrigo, o filho primogênito de 27 anos, que cuidava dos negócios com o pai e Constância, a filha caçula de 19 anos. A propriedade dos Albuquerque não era das maiores da região, mas gozava de certa prosperidade em comparação com os padrões locais.

Além da casa principal, havia algumas construções menores, onde moravam os trabalhadores, um pequeno armazém e um galpão utilizado para o armazenamento da borracha. Quando o delegado Mendonça chegou à propriedade dos Albuquerque para iniciar as investigações, foi recebido com uma hospitalidade que, segundo suas próprias anotações, parecia estudadamente cordial.

Jerônimo Albuquerque insistia que seu filho provavelmente havia partido para Belém a negócios e logo retornaria. Quanto a jovem Anaí, demonstrava pouco interesse, afirmando apenas que estas gentes vão e vem como vento, sem avisar. Eleonora mantinha-se em silêncio, respondendo apenas quando diretamente questionada, enquanto a jovem Constância parecia inquieta, como registrou Mendonça em suas observações.

A propriedade dos Albuquerque ficava a aproximadamente uma hora de barco de Vila Conceição, relativamente isolada. Os trabalhadores, quando questionados mostravam-se reticentes, desviavam o olhar, respondiam com monossílabos. Um deles, no entanto, um homem chamado Sebastião Coelho, depois de muita insistência e longe dos olhares da família, confidenciou ao delegado que nos dias anteriores ao desaparecimento havia tensão na casa principal.

O patrão e o filho discutiam alto, coisa que nunca acontecia antes, relatou. A menina indígena andava cabisbaixa e a senora Eleonora passou dias inteiros fechada em seu quarto. O detalhe mais perturbador, porém, veio de Francisca Soares, antiga cozinheira da casa, que relatou ter visto Anaí e Rodrigo conversando as escondidas diversas vezes nas semanas anteriores. Eles paravam de falar quando alguém se aproximava, disse ela ao delegado.

E uma vez vi o Senr. Jerônimo observando os dois de longe, com um olhar que me fez tremer. Mendonça decidiu que precisava examinar os aposentos de ambos os desaparecidos. No quarto de Rodrigo, tudo parecia em ordem. Roupas organizadas no armário, a cama arrumada como se ele tivesse saído para um passeio.

Já o espaço destinado a Anaí, um pequeno cômodo anexo à cozinha, apresentava sinais de que ela não pretendia partir. Ali estavam os poucos objetos pessoais que possuía, incluindo um pequeno colar de sementes que, segundo Francisca, ela nunca tirava do pescoço. A investigação ganhou um rumo inesperado quando Mendonça, ao inspecionar as margens do rio próximo à propriedade, encontrou uma pequena embarcação parcialmente submersa entre a vegetação.

Era uma canoa utilizada pelos trabalhadores para transporte local e apresentava manchas escuras no fundo que o delegado suspeitou serem de sangue. Este achado foi registrado oficialmente, mas curiosamente no dia seguinte, quando Mendonça retornou com dois ajudantes para recolher a embarcação, ela havia desaparecido.

Confrontado com este fato, Jerônimo Albuquerque afirmou que, provavelmente algum dos trabalhadores havia encontrado a canoa e a levado para reparo, embora nenhum deles tenha confirmado esta versão. atenção crescia à medida que o delegado aprofundava suas investigações. Os dias passavam e não havia sinal de Rodrigo ou Anaí.

Aos poucos, Mendonça começou a perceber sutis mudanças de comportamento na família. Jerônimo tornava-se mais impaciente. Eleonora parecia definhar a olhos vistos e Constância frequentemente era vista chorando sozinha próxima ao rio. Foi durante uma dessas visitas que o delegado por acaso conheceu o padre Anselmo Cordeiro, um missionário que ocasionalmente visitava a região para levar conforto espiritual aos moradores mais isolados.

O religioso, ao saber do desaparecimento, mostrou-se particularmente interessado no caso de Anaí. Segundo ele, a jovem era uma das últimas descendentes de um pequeno grupo indígena da região do alto rio Negro, trazida para Belém, ainda criança, após um conflito que dizimou sua aldeia. “Ela guardava lembranças da sua origem”, comentou o padre.

E nos últimos meses havia me procurado algumas vezes para falar sobre seu povo, como se quisesse preservar memórias que temia perder. O relato do padre trouxe uma nova dimensão ao caso. Anaí não era apenas mais uma trabalhadora anônima, mas uma pessoa com história, memória e, possivelmente, um desejo de reconexão com suas origens.

Mendonça passou a questionar se o desaparecimento poderia estar relacionado a alguma tentativa da jovem de retornar ao seu território ancestral, embora isso não explicasse o sumisso simultâneo de Rodrigo. A investigação tomou um rumo decisivo quando uma forte tempestade atingiu a região.

Chuvas intensas elevaram o nível do rio Guamá, e as águas trouxeram à superfície o que a Terra e o silêncio haviam tentado ocultar. A cerca de 500 m da propriedade dos Albuquerque, no que localmente chamavam de remanso do choro, uma pequena enceada onde as águas formavam um redemoinho, um pescador chamado Firmino Bastos encontrou restos de tecido enredados entre galhos submersos.

Ao puxar o que pensava ser apenas um pedaço de pano, descobriu que estava preso a algo mais pesado. O que emergiu das águas foi um corpo em avançado estado de decomposição, mas ainda reconhecível pela vestimenta. Era Rodrigo Albuquerque. A notícia correu rápido, chegando aos ouvidos do delegado antes mesmo que o corpo fosse levado à Vila Conceição.

Mendonça imediatamente retornou à propriedade dos Albuquerque, desta vez acompanhado por três homens armados. A reação da família ao ser informada do achado foi reveladora. Jerônimo empalideceu, mas manteve a compostura. Ele desmaiou e precisou ser amparada. Constância, no entanto, não demonstrou surpresa, apenas um profundo pesar.

O exame do corpo, realizado de forma rudimentar pelo boticário local, que tinha algum conhecimento de medicina, revelou que Rodrigo havia sofrido um ferimento na região posterior da cabeça, provavelmente causado por um objeto contundente. A morte, estimava o homem, havia ocorrido cerca de duas ou três semanas antes, coincidindo com a data do desaparecimento. Não havia, contudo, sinal algum de Anaí.

Com esta descoberta, o caso deixou de ser um simples desaparecimento para se tornar uma investigação de homicídio. Jerônimo e Eleonor Albuquerque foram formalmente interrogados, agora como suspeitos. Ambos negaram veementemente qualquer envolvimento na morte do filho, insistindo que deveria ter sido um acidente, ou pior, um ataque de forasteiros.

Quando questionados sobre Anaí, mantiveram a versão de que ela havia simplesmente partido. O delegado Mendonça, no entanto, não estava convencido. Suas suspeitas aumentaram quando, durante uma busca mais minuciosa na propriedade, encontrou escondido sob o açoalho do quarto de Rodrigo um pequeno caderno encadernado em couro.

era um diário e as últimas entradas revelavam um segredo que a família Albuquerque tentava desesperadamente ocultar. Nas páginas amareladas pelo tempo e humidade, Rodrigo havia registrado sua crescente proximidade com Anaí. O que começara como uma relação entre patrão e serviçal havia se transformado em algo mais profundo. Ah, me contou hoje sobre as estrelas que guiavam seu povo nos deslocamentos sazonais”, escreveu ele em determinada entrada.

Há mais conhecimento em suas palavras simples do que em todos os livros que meu pai tanto valoriza. Em outra passagem, datada de apenas uma semana antes do desaparecimento, lia-se: “Não posso mais adiar. Devo falar com meu pai, embora tema sua reação. A e eu decidimos partir juntos para Manaus, onde poderemos viver longe deste lugar e seus preconceitos. As palavras de Rodrigo sugeriam não apenas uma relação afetiva com Anaí, mas planos concretos de fuga. No entanto, algo havia dado errado.

A última entrada do diário, incompleta e com a caligrafia visivelmente alterada, como se escrita às pressas, dizia apenas: “Ele descobriu. Confrontou-me esta noite. Nunca vi meu pai tão”. O diário foi incorporado oficialmente aos autos do processo como evidência quando confrontado com seu conteúdo, Jerônimo Albuquerque perdeu a compostura que mantivera até então.

“Meu filho perdeu o juízo”, exclamou. “Deixarse envolver por uma selvagem”. Eu apenas tentei fazê-lo entender a loucura que estava prestes a cometer. A confissão veio quase naturalmente após este acesso de raiva. Segundo Jerônimo, ele havia descoberto os planos do filho através de uma carta que interceptara destinada a um contato em Manaus.

Naquela noite, confrontou Rodrigo no galpão de armazenamento longe da casa. A discussão escalou rapidamente e, em um momento de fúria, Jerônimo golpeou o filho com uma peça de metal utilizada na prensa de borracha. “Não tive intenção de matá-lo”, insistia o homem, agora envelhecido pelo peso da culpa. “Foi um momento de descontrole. Ele me desafiou.

Disse que partiria mesmo contra a minha vontade, que preferia viver como um pária com aquela Índia, a herdar tudo que construí.” Quando questionado sobre Anaí, no entanto, Jerônimo alegou o desconhecimento. “A selvagem não estava lá”, afirmou. Não a vi desde aquela tarde. Deve ter fugido ao perceber que seu plano fora descoberto. Ele Albuquerque, quando, novamente interrogada, parecia uma mulher transformada.

O semblante antes altivo deu lugar a uma expressão de profundo cansaço. “Meu marido mente”, disse ela ao delegado. A Naí estava sim no galpão naquela noite. Eu a vi entrar pouco depois de Rodrigo. Foi ela quem gritou primeiro. Segundo o relato de Eleonora, ela havia seguido o marido à distância, temendo o que poderia acontecer, pois notara a crescente obsessão de Jerônimo com a proximidade entre o filho e a jovem indígena.

Quando ouviu o grito, correu para o galpão, mas chegou apenas a tempo de ver Rodrigo caído, Anaí ajoelhada junto a ele e Jerônimo empunhando a peça metálica manchada de sangue. Ele me viu na porta e ordenou que voltasse para casa, que cuidaria de tudo. Contou com a voz quase inaudível. Obedeci. Deus me perdoe, mas obedeci. O que aconteceu com Anaí após aquele momento? permanecia um mistério.

Ele afirmou não ter mais visto a jovem e acreditava que o marido havia se livrado dela para eliminar a única testemunha do crime. Jerônimo, mesmo quando confrontado com o testemunho da esposa, manteve-se irredutível. Não sabia o paradeiro da indígena. Foi Constância, a filha mais nova, quem trouxe as últimas peças daquele quebra-cabeça macabro.

Após dias, resistindo a falar com as autoridades, finalmente cedeu não ao delegado, mas ao padre Anselmo, a quem confessou o que sabia. Segundo seu relato, na noite da tragédia, ela foi acordada por ruídos vindos do quintal. Da janela de seu quarto, viu o pai carregando algo envolto em um cobertor para dentro de uma canoa.

Pouco depois, ele retornou sozinho. Na manhã seguinte, contou ela ao padre, encontrei manchas escuras no chão da cozinha. Minha mãe estava limpando-as obsessivamente, chorando em silêncio. Quando perguntei sobre Anaí, respondeu apenas que ela não voltaria mais.

O delegado Augusto Mendonça ordenou uma busca extensiva nas margens do rio Guamá, concentrando-se especialmente na área conhecida como Remanso do Choro, onde o corpo de Rodrigo havia sido encontrado. Após quase uma semana de buscas incessantes, os esforços deram resultado. submerso entre raízes de uma árvore caída, encontraram outro corpo, este envolto em um cobertor que correspondia a descrição feita por Constância. Era Anaí.

O exame do corpo revelou que a jovem indígena havia sofrido múltiplos ferimentos consistentes com uma agressão violenta. Mais perturbador, porém, foi a descoberta de que ela estava grávida, aproximadamente no terceiro mês de gestação, segundo estimou o Boticário. Jerônimo Albuquerque foi formalmente acusado do homicídio de seu filho Rodrigo e da jovem Anaí.

Eleonora foi indiciada como cúmplice por omissão e ocultação de provas. O caso gerou comoção em Belém, principalmente após a revelação da gravidez de Anaí, que sugeria um motivo ainda mais forte para a fúria de Jerônimo, a perspectiva de que seu filho não apenas se relacionava com uma indígena, mas também havia gerado um descendente com ela.

O julgamento realizado em novembro de 1899 foi breve. Apesar da gravidade dos crimes, a influência da família Albuquerque e o fato de uma das vítimas ser indígena, considerada por muitos como menos relevante na hierarquia social da época, resultaram em penas que hoje seriam consideradas brandas. Jerônimo foi condenado a 12 anos de reclusão, dos quais cumpriu apenas oito antes de falecer na prisão, vítima de febre amarela.

Eleonora recebeu uma pena de 3 anos, mas foi libertada após 18 meses por razões humanitárias, dado seu precário estado de saúde mental. Constância Albuquerque, após o julgamento, vendeu a propriedade da família e mudou-se para o Rio de Janeiro, onde, segundo consta, casou-se e viveu discretamente até sua morte em 1942. Em seu testamento, encontrado nos arquivos de um cartório carioca, deixou uma quantia significativa para a construção de uma escola para crianças indígenas na região amazônica, um gesto interpretado por alguns como uma tentativa de expiação pela tragédia que

marcou sua juventude. O caso da indígena Anaí seria provavelmente esquecido, como tantos outros crimes contra povos originários ocorridos naquele período, não fosse pela persistência de um jovem pesquisador chamado Carlos Eduardo Martins. Em 1963, enquanto realizava um estudo sobre a história da justiça no Pará, Martins encontrou os registros do caso durante a já mencionada reforma no prédio do antigo tribunal.

Intrigado pela história, dedicou-se a rastrear todos os documentos relacionados, incluindo o Diário de Rodrigo, relatórios do delegado Mendonça e depoimentos das testemunhas. O resultado de sua pesquisa foi uma monografia intitulada Silêncios da Floresta, justiça e preconceito na Amazônia do século XIX, que seria publicada pela Universidade Federal do Pará.

No entanto, semanas antes da publicação prevista, Martins desapareceu misteriosamente durante uma viagem à antiga Vila Conceição, agora um distrito praticamente abandonado. Seu barco foi encontrado à deriva no rio Guamá, precisamente na área conhecida como Remanso do Choro. Seu corpo jamais foi recuperado. A monografia de Martins, embora nunca oficialmente publicada, circulou em cópias datilografadas entre acadêmicos e pesquisadores da região.

Em suas últimas páginas, o autor relatava um fato curioso. Durante sua investigação, descobriu que, desde a morte de Anaí, pescadores locais evitavam o remanso do choro, alegando ouvir lamentos em noites de lua cheia. Inicialmente cético, Martins decidiu pernoitar no local durante sua última viagem a campo.

Em suas anotações finais, escreveu: “Esta noite irei ao remanso não por superstição, mas pela convicção de que certos lugares absorvem a energia dos eventos traumáticos que ali ocorreram. Se há algo a ser escutado, não serão fantasmas, mas os ecos de uma injustiça que a história oficial prefere esquecer. Em 1964, todos os documentos relacionados ao caso foram microfilmados e arquivados na biblioteca pública do Pará.

Anos depois, durante uma grande enchente, parte do acervo foi danificada, incluindo os microfilmes contendo os registros originais. Restaram apenas fragmentos da monografia de Martins e algumas cópias incompletas dos depoimentos preservadas por colecionadores particulares.

O local onde ficava a propriedade dos Albuquerque foi gradualmente reclamado pela floresta. O remanso do choro, no entanto, ainda existe. Um trecho calmo do rio Guamá, onde as águas parecem murmurar histórias que poucos ousam escutar. Pescadores locais continuam a evitá-lo, especialmente em noites de lua cheia. Quando questionados sobre o motivo, respondem apenas com um olhar distante e palavras evasivas sobre respeito aos que se foram.

Em 2010, uma pequena placa foi instalada discretamente próxima ao local por iniciativa de uma organização de defesa dos direitos indígenas. Nela lê-se simplesmente: “Em memória de Anaí e de todos aqueles cujas vozes foram silenciadas pela história, a placa já foi vandalizada e substituída diversas vezes.

Um lembrete de que, mesmo após mais de um século, certas feridas permanecem abertas na memória coletiva amazônica. Os documentos restantes do caso Anaí encontram-se hoje sob a guarda do Museu Emílio Goeld em Belém, junto a outros registros históricos relacionados aos povos indígenas da Amazônia. Pesquisadores que se debruçam sobre o material frequentemente relatam peculiar, a de que entre aquelas páginas amareladas respira ainda um pedido silencioso de justiça, não apenas para Anaí e Rodrigo, mas para todos aqueles cujas histórias permanecem submersas nas

águas turvas do tempo. E assim como as águas do rio Guamá, que continuam seu curso implacável, a história de Anaí segue ecoando pelos recantos da memória amazônica, um lembrete sombrio de que, por baixo da superfície aparentemente tranquila correm correntes profundas de segredos, violência e silêncios cúmplices.

Silêncios que, mesmo depois de mais de um século, parecem sussurrar entre as folhagens da floresta, especialmente nas noites em que a lua cheia se reflete nas águas do remanso do choro. O legado mais perturbador do caso talvez seja justamente a forma como ele ilumina um padrão histórico, a facilidade com que vidas consideradas menos importantes são descartadas e rapidamente esquecidas pelos registros oficiais.

Se não fosse pela obstinação do delegado Mendonça em 1899 e pela curiosidade acadêmica de Carlos Eduardo Martins em 1963, o nome de Anaí seria apenas mais um, entre tantos outros apagados das páginas da história brasileira. Para aqueles que conhecem esta história e visitam o remanso do choro, o local parece carregar um peso quase tangível. As árvores ali parecem mais densas, a atmosfera mais pesada, as águas mais escuras, não por alguma maldição sobrenatural, mas pelo peso da memória e da injustiça.

Um peso que, assim como os corpos de Rodrigo e Anaí, jamais encontrou seu verdadeiro descanso. Em 2017, um grupo de estudantes de antropologia da Universidade Federal do Pará realizou um projeto de história oral na região, coletando relatos de moradores antigos. Uma senhora de 92 anos, neta de um dos trabalhadores da antiga propriedade dos Albuquerque, compartilhou uma memória transmitida por seu avô.

Ele dizia que na noite em que a moça desapareceu, ouviu-se um canto triste vindo do rio na língua do povo dela. Um canto para a criança que carregava e nunca chegaria a conhecer a luz do dia. A história de Anaí continua reverberando como um eco distante que se recusa a desvanecer completamente.

um lembrete de que mesmo quando as estruturas sociais conspiram para silenciar certas vozes, a verdade encontra formas de emergir, às vezes levando décadas ou mesmo séculos, mas eventualmente vindo à tona, como um corpo submerso que as águas, em seu tempo, decidem revelar. Para os poucos que ainda sabem identificar o remanso do choro em seus mapas mentais da região, o local permanece como um monumento não oficial a uma tragédia pessoal que reflete uma tragédia coletiva muito maior, a dos povos originários, cujas histórias foram sistematicamente apagadas, distorcidas ou reduzidas a

notas de rodapé na grande narrativa nacional. E assim termina nossa narrativa sobre o horripilante caso da indígena Anaí, não com respostas definitivas ou justiça completa, mas com o reconhecimento de que certas histórias precisam ser contadas e recontadas para que os silêncios impostos não se tornem esquecimentos permanentes.

Porque enquanto houver quem escute, quem lembre e quem conte, Anaí não terá desaparecido completamente nas águas escuras do rio Guamá e do tempo. O que poucos sabem, no entanto, é que a história de Anaí teve desdobramentos que só vieram à luz muitas décadas depois. Em 1957, durante a construção de uma pequena hidrelétrica na região, operários encontraram, enterrado sob camadas de sedimento às margens do remanso do choro, um objeto que parecia não pertencer àquele lugar, uma pequena caixa de metal hermeticamente fechada com lacre de cera. A caixa foi enviada ao Museu Paraense Emílio Goeld, onde

permaneceu esquecida. em um depósito por quase 5 anos até ser catalogada durante um projeto de reorganização do acervo. Quando, finalmente aberta, revelou conter um conjunto de papéis cuidadosamente preservados, entre eles, o que aparentava ser páginas arrancadas do Diário de Rodrigo Albuquerque. Páginas que não constavam nos autos do processo original.

Nestas páginas datadas das semanas anteriores à sua morte, Rodrigo descrevia em detalhes o plano que havia elaborado com Anaí. O casal não pretendia apenas fugir para Manaus, como se acreditava inicialmente. Seu verdadeiro destino era o alto rio negro, a terra ancestral do povo de Anaí, onde, segundo ela, ainda existiam remanescentes de sua tribo, que haviam escapado dos conflitos que dizimaram sua aldeia original.

A me contou sobre um lugar onde o rio se divide em três caminhos”, escreveu Rodrigo. “Um local que seu povo considera sagrado, onde a mata é mais densa e o céu parece mais próximo da terra. Ali, segundo ela, poderíamos viver em paz, longe dos olhares de julgamento e das amarras da chamada civilização, que, paradoxalmente se mostra tão mais selvagem que os povos a quem tenta subjugar.

Mais surpreendente, porém, foi um outro documento encontrado na Caixa, uma carta escrita por Eleonor Albuquerque, datada de 1923, mais de duas décadas após os eventos trágicos. A carta endereçada a uma sobrinha que vivia no Rio de Janeiro nunca foi enviada e seu conteúdo lança uma luz completamente nova sobre o caso. Ele confessava que sua versão dos eventos dada durante o processo fora parcialmente falsa.

Ela não apenas testemunha o confronto entre seu marido e Rodrigo, mas estivera ativamente envolvida nos eventos daquela noite fatídica. Segundo seu relato, quando chegou ao galpão e viu o filho caído, Anaí não estava ajoelhada ao lado dele, como havia declarado. Na verdade, a jovem indígena estava de pé, segurando a mesma peça metálica que supostamente Jerônimo havia usado para golpear Rodrigo.

“A Índia olhou para mim com olhos que jamais esquecerei”, escreveu Eleonora. Não havia medo ou culpa neles, apenas uma determinação selvagem. Ela disse em seu português imperfeito que Rodrigo havia tentado defender-se do ataque de Jerônimo, que lutaram e que na confusão meu marido acabou ferido. Disse que precisávamos fugir imediatamente, que havíamos combinado partir naquela mesma noite, que tudo estava preparado.

O que se seguiu, conforme o relato de Eleonora, foi um momento de decisão que carregaria pelo resto de sua vida. vendo o filho gravemente ferido, talvez já morto, e confrontada com a versão de Anaí, que contradizia o que seus próprios olhos haviam visto ao chegar ao galpão, optou por chamar o marido, que se encontrava na casa.

Quando Jerônimo chegou e viu a cena, acusou imediatamente a Anaí de ter atacado o filho. A jovem negou veementemente, insistindo que fora Jerônimo o responsável pelo ferimento de Rodrigo. Foi neste momento de confusão, com acusações cruzadas e meu filho sangrando no chão, que cometemos nosso pior erro”, confessou Eleonora. Jerônimo avançou sobre a Índia com uma fúria que nunca havia demonstrado antes.

Eu poderia tê-lo impedido, mas não o fiz. Parte de mim acreditava que ela era culpada, que havia seduzido meu filho e agora o atacara quando ele possivelmente recusara a fugir com ela. E assim permaneci paralisada, assistindo ao meu marido agredir aquela jovem até que ela não se movesse mais.

O relato prosseguia detalhando como Jerônimo, percebendo a gravidade do que havia feito, decidiu ocultar os corpos. Primeiro Anaí, levada naquela mesma noite para o remanso do choro. Depois Rodrigo, carregado até o mesmo local na noite seguinte. Eleonora ajudou na limpeza dos vestígios, enquanto Constância, embora desconhecendo a totalidade dos fatos, intuía que algo terrível ocorrera.

A carta de Eleonora, no entanto, revelava uma reviravolta final, ainda mais perturbadora. Nas semanas que se seguiram à tragédia, enquanto o delegado Mendonça conduzia suas investigações, ela começou a questionar sua própria percepção dos eventos. Lembrou-se que ao chegar ao galpão havia visto apenas o final da cena.

Rodrigo caído e Anaí segurando o objeto metálico. Não testemunha o início do confronto. O que me assombra hoje, passados tantos anos, é a dúvida que nasceu e cresceu em mim. Escreveu: “E se Aí estivesse dizendo a verdade? E se ela tivesse apenas tomado o objeto das mãos de Jerônimo, tentando defender meu filho, o sangue na peça metálica poderia ser de qualquer um dos três.

E Jerônimo, quando o confrontei com esta possibilidade, anos depois, teve uma reação que só aumentou minhas suspeitas. em vez de negar veementemente, silenciou-se e nunca mais tocou no assunto. A dúvida que consumiu Eleonora pelo resto de sua vida, se havia sido cúmplice na morte de uma inocente e na condenação injusta de seu marido, parecia ser a verdadeira razão para sua deterioração mental e física nos anos que se seguiram.

Na parte final da carta, escrita com caligrafia trêmula, ela menciona que o peso deste segredo é minha verdadeira prisão, muito mais longa e cruel que os 18 meses que passei encarcerada. A carta terminava com uma revelação que jamais veio a público durante o processo. O que nunca revelei a ninguém é que, ao limpar o galpão após aquela noite terrível, encontrei sob um dos tablados um pequeno embrulho pertencente à Anaí.

Dentro havia um par de anéis trançados com fibras vegetais. um trabalho delicado que ela certamente aprendera com seu povo. Eram alianças, tenho certeza, que ela e Rodrigo pretendiam usar em sua nova vida. Este objeto, esta prova de um amor que condenamos sem compreender, guardo comigo até hoje como penitência por meu silêncio.

Os documentos encontrados na caixa metálica foram analisados por historiadores e antropólogos. A autenticidade da carta de Eleonora foi confirmada por comparação com outros escritos seus. As páginas do Diário de Rodrigo também parecem genuínas, embora seja impossível determinar com certeza se foram realmente arrancadas do diário original ou escritas separadamente. Esta descoberta levantou questões perturbadoras sobre a verdadeira sequência de eventos naquela noite de 1899.

Se a dúvida de Eleonora tivesse fundamento, a história oficial do caso estaria completamente equivocada. Anaí poderia ter sido não uma sedutora que desviou Rodrigo do caminho correto, como a sociedade da época a retratou, mas uma jovem apaixonada que tentou proteger seu companheiro e acabou duplamente vitimada.

Primeiro pela violência física, depois pela distorção de sua memória. Historiadores contemporâneos que estudam o caso apontam para a impossibilidade de determinar com certeza absoluta o que realmente aconteceu. Os únicos três presentes no momento crucial, Rodrigo, Anaí e Jerônimo, estão mortos há muito tempo. Leonora, a única testemunha parcial, terminou seus dias atormentada pela dúvida.

E assim o caso permanece em um limbo histórico, onde diversas versões coexistem sem que nenhuma possa ser definitivamente comprovada ou descartada. Em 2012, durante a comemoração do Dia dos Povos Indígenas, um grupo de estudantes e professores da Universidade Federal do Pará organizou uma cerimônia simbólica no Remanso do choro.

Ali foi plantada uma muda de Sumaa, árvore considerada sagrada por diversos povos amazônicos. Junto à árvore colocaram uma placa com os nomes de Anaí e Rodrigo e uma inscrição em Nhengatu, língua geral amazônica, para que as águas levem o sofrimento, mas preservem a memória. O caso da indígena Anaí continua sendo objeto de estudo em disciplinas de história do direito, antropologia e estudos amazônicos.

representa não apenas uma tragédia individual, mas um microcosmo das tensões sociais, raciais e de gênero que permeavam a sociedade brasileira no final do século XIX e que, em muitos aspectos, persistem ainda hoje. Periodicamente, novos pesquisadores revisitam o caso, trazendo diferentes perspectivas e metodologias. Em 2016, uma equipe de arqueólogos forenses tentou localizar os restos mortais de Anaí e Rodrigo, utilizando técnicas modernas de prospecção.

A tentativa foi infrutífera, possivelmente devido às alterações no curso do rio ao longo do último século. No mesmo ano, um projeto de história oral coletou depoimentos de descendentes dos trabalhadores que viviam na propriedade dos Albuquerqu. Estas narrativas, transmitidas através de gerações, oferecem versões alternativas da história, algumas delas incorporando elementos folclóricos e crenças regionais.

Em uma destas versões, Anaí não teria morrido naquela noite, mas escapado, ferida para a floresta, onde teria sido acolhida por seu povo. Anos depois, segundo este relato, ela teria retornado para buscar justiça, não através da lei dos homens, mas invocando forças ancestrais que teriam condenado os albquerque a uma existência de sofrimento e decadência.

A antropóloga Mariana Ribeiro, que coordenou o projeto, observa que estas narrativas, embora não possam ser consideradas verdades históricas no sentido tradicional, representam uma forma de resistência cultural. Nas histórias orais, Anaí não é apenas uma vítima passiva, mas adquire agência. Sua memória é preservada e ressignificada, de maneira que lhe confere poder e justiça, mesmo que simbólica.

O jornalista e escritor paraense Paulo Martins, sem relação com o pesquisador desaparecido, publicou em 2019 o livro Remanso do Choro, Anaí, e a construção de um silêncio histórico, no qual argumenta que o caso exemplifica como a historiografia oficial tende a minimizar ou distorcer violências contra povos indígenas e mulheres.

O verdadeiro horror desta história, escreve ele, não está apenas nos eventos daquela noite, mas na facilidade com que a sociedade aceitou uma versão que desumanizava na e a transformava de vítima em antagonista. Na comunidade ribeirinha, que hoje existe próxima ao local da antiga propriedade do Zbuquerque, o legado do caso manifesta-se de formas mais sutis.

O remanso do choro continua sendo evitado por muitos pescadores, especialmente à noite. Alguns moradores mais antigos fazem oferendas de flores que depositam nas águas em determinadas datas, sem necessariamente associar o gesto diretamente à história de Anaí, mas mantendo viva uma tradição cujas origens se perdem nas brumas do tempo e da memória coletiva.

Para os povos indígenas da região, particularmente aqueles do alto rio negro, a história de Anaí adquiriu dimensão simbólica. Em 2020, durante um encontro de lideranças indígenas em Manaus, uma representante do povo Baré afirmou: “Aía é todas nós, todas as mulheres indígenas, cujas vozes tentaram silenciar, cujas histórias tentaram apagar, cujos corpos tentaram subjugar.

Mas como ela, ressurgimos sempre das águas, geração após geração, carregando a memória e a resistência de nossos ancestrais. E assim, mais de 120 anos após aquela fatídica noite de 1899, o caso da indígena Anaí permanece como uma ferida aberta na história amazônica, um lembrete das injustiças passadas e uma exortação à vigilância contra sua repetição.

Como escreveu Carlos Eduardo Martins em suas últimas anotações antes de desaparecer, certas histórias resistem ao esquecimento, não porque sejam excepcionais, mas precisamente porque são representativas de padrões que se repetem através dos tempos. O caso de Anaí é, infelizmente, menos uma anomalia e mais um reflexo fiel de uma sociedade construída sobre desigualdades e silenciamentos.

O remanso do choro continua lá, um ponto aparentemente comum no vasto curso do rio Guamá. Para o observador desavisado, nada o distingue de tantos outros trechos daquele rio imenso. Mas para aqueles que conhecem sua história, suas águas parecem carregar um peso especial.

O peso da memória, da injustiça e talvez de uma verdade que jamais conheceremos completamente. As últimas luzes do dia se refletem na superfície das águas. O vento sussurra entre as folhagens. criando sons que, com um pouco de imaginação, poderiam ser confundidos com vozes distantes, não vozes sobrenaturais, mas ecos de um passado que se recusa a ser esquecido.

E enquanto houver quem conte o nome de Anaí for pronunciado, algo dela permanece, não como um fantasma, mas como um lembrete de nossa responsabilidade coletiva perante a história e seus silêncios. M.

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