O jornalista relata a história de uma aliança inusitada no sertão:

Dizem que no sertão o sol não nasce, ele ataca. Ele não pede licença, ele invade a pele, seca a lágrima antes mesmo dela cair do olho e transforma a esperança em poeira fina. Mas em 1926, no interior do Ceará, a secura não era a única coisa que matava. Não, senhor. Havia algo pior que a falta de chuva: havia a sobra de maldade. Naquele ano, o diabo não vestia vermelho nem tinha chifre; o diabo vestia linho branco, cheirava a lavanda importada e atendia pelo nome de Epaminondas Saraiva. Enquanto o povo roía o osso para não morrer de fome, a fazenda Boa Vista cuspia riqueza. O Coronel Epaminondas tinha descoberto o que ele chamava de “sangue da terra”: uma mina de ametistas e topázios encravada na rocha dura do Cariri. Para arrancar pedra preciosa da terra, meu amigo, precisa de duas coisas: suor de pobre e água, muita água. O Riacho das Almas, que matava a sede de cinco povoados, agora era propriedade privada. O coronel mandou erguer um paredão de concreto e represou tudo, não para beber, mas para lavar pedra. As pedras dele brilhavam limpinhas, lavadas na abundância, enquanto as crianças das vilas vizinhas bebiam lama misturada com urina de gado. Epaminondas era o dono da vida e da morte.
Foi numa terça-feira cinzenta que a corda arrebentou. Sebastião, um romeiro que vinha de Alagoas, chegou no limite. O filho mais novo já não abria o olho, a sede tinha transformado a criança num boneco de pano murcho. Sebastião parou na beira da cerca de arame farpado. Do outro lado, a bica d’água da lavagem das pedras estava jorrando água limpa no chão, desperdiçada. Sebastião era homem de paz, homem de fé, mas a sede de um filho faz o homem esquecer o medo. Ele pulou a cerca. Ele não queria joias, ele queria a vida. Mas na terra de Epaminondas, água valia mais que sangue. Os capangas do coronel riram. Sebastião se ajoelhou, implorando por um gole, mas o coronel Epaminondas, assistindo de binóculo da varanda da casa grande, só fez um aceno sutil com a mão. O tiro foi seco. Sebastião caiu, o balde virou, a água se misturou com o sangue na terra seca. A esposa gritou um grito mudo. O corpo de Sebastião foi deixado lá para os urubus, como aviso: “Aqui quem manda é o coronel e a água é dele.”
A notícia no sertão voa. Não demorou um dia para o choro daquela viúva chegar em Juazeiro do Norte. Ela foi bater na porta da casa do Padre Cícero Romão Batista. Dizem que quando o padre viu aquela mulher, ele não falou nada. Ele viu a imagem dele mesmo, aquela santinha de gesso que o marido dela carregava, quebrada e manchada de sangue inocente. Ali, o Padre Cícero não era o santo milagreiro, ele era um homem velho, cansado de ver o povo dele ser tratado pior que gado magro. Primeiro, ele tentou a lei. Mandou chamar o delegado, mas o homem da lei murchou ao ouvir o nome do Coronel Epaminondas Saraiva. “Padre, o Senhor sabe como é, foi dentro das terras dele. O coronel disse que foi legítima defesa, e quem sou eu para desmentir o dono da mina?” A lei, meu camarada, parava na cerca do coronel. O Padre Cícero passou a noite em claro. Ele escreveu uma carta para o governador, mas a resposta foi: “Assunto local, o estado não interfere em disputa de terra privada.” Foi aí que o padre entendeu: o coronel Epaminondas tinha comprado o Ceará inteiro e o silêncio.
Era uma quinta-feira abafada quando o padre chamou o coroinha, Zé Pequeno. O padre tirou do bolso da batina um anel simples. “Leve isso para ele e diga apenas três palavras: ‘A bênção espera’.” O capitão era Virgulino Lampião, o Rei do Cangaço. O padre sabia que para parar um demônio de terno branco, ele precisava de um demônio de gibão de couro. A política tinha falhado, a oração tinha sido ignorada. Agora a conversa seria noutra língua: a língua da pólvora.
Naquela noite, Lampião e Corisco entraram na sacristia. O cangaceiro se ajoelhou diante do padre: “A bênção, meu padrinho.” Cícero não recolheu a mão. “Deus te abençoe, Virgulino. Levante-se. Não te chamei aqui para confissão.” O padre apontou na direção da fazenda Boa Vista. “Não é o governo, Virgulino. O problema é mais fundo, é o Coronel Epaminondas, o dono da mina. Ele matou um inocente por um gole d’água, Virgulino. Ele represou o Riacho das Almas para lavar pedra enquanto o meu povo bebe lama. A justiça dos homens disse que ele está certo.” Lampião perguntou: “O senhor quer que eu sangre ele?” Cícero se aproximou. “Eu não quero vingança, Virgulino. Eu quero justiça. Eu não quero a morte dele, a morte é descanso para gente ruim. Eu quero que você quebre o orgulho dele. Eu quero que você devolva a água pro leito do rio. Eu quero que aquela mina, aquele ‘sangue da terra’ que ele tanto adora, volte pro pó.”
“Derrubar a barragem vai precisar de muita dinamite, padrinho, e vai fazer um barulho que vão ouvir lá em Fortaleza.” “Faça o barulho que for preciso,” sentenciou Cícero, mas com uma condição: “Não quero massacre de inocente. Mas o coronel e os jagunços que atiram em pai de família, esses eu deixo na sua conta.” Lampião sorriu. “Padrinho, o Senhor cuida das almas, deixe que dos corpos cuido eu. A água vai correr amanhã.” Padre Cícero lhe deu um rosário de madeira escura. “Isso não é para te proteger da bala, Virgulino, é para te lembrar que a mão que atira também deve saber perdoar. Vá, e que Deus tenha piedade do que vai acontecer hoje à noite.” O pacto estava selado.
Lampião e seu bando partiram, deslizando na escuridão. Chegaram na fazenda Boa Vista. Lampião disparou o primeiro tiro para o céu, anunciando que o inferno tinha chegado para cobrar o aluguel. Os jagunços do coronel, acostumados a bater em lavrador desarmado, fugiram. Em menos de 20 minutos, o tiroteio cessou. Lampião subiu à escada e chutou a porta do quarto. Lá estava o Coronel Epaminondas Saraiva, debaixo da cama king size, tremendo feito vara verde, enrolado num lençol de seda. Corisco riu e puxou o coronel pelos pés. O homem gordo gritava: “Não me matem! Eu tenho dinheiro! Levem as pedras!”. Lampião agachou-se perto dele. “Eu não vim buscar seu ouro, coronel. Eu vim buscar o que o Senhor roubou de Deus.” O cangaceiro forçou o coronel a olhar para a represa. “Eu não vou te matar agora, coronel. O Senhor precisa viver para ver sua riqueza virar lama.”
Lá embaixo, os cangaceiros acenderam o pavio da dinamite. A barragem, orgulho da engenharia do coronel, abriu-se como uma ferida. A água que estava presa libertou-se com fúria. A torrente barrenta desceu o vale, e Epaminondas gritava. Ele viu as pilhas de cascalho precioso serem engolidas e devolvidas para a terra. A mina a céu aberto virou um lago de lama em minutos. Lampião se voltou para o homem arruinado no chão. “A água voltou pro povo, coronel. E se o senhor tentar fechar o rio de novo, eu volto e da próxima vez eu não uso dinamite na parede, eu uso na sua barriga.” Ele tirou o rosário de madeira escura que o padre tinha lhe dado e enrolou-o no pescoço de Epaminondas, apertando só o suficiente para ele sentir o nó. “Presente do Padim Cícero, para o senhor aprender a rezar direito.” O bando sumiu na caatinga, deixando para trás um coronel vivo, mas destruído.
No dia seguinte, em Juazeiro do Norte, o que brilhava era o Riacho das Almas. As mulheres lavadeiras desceram e encontraram o milagre. Na cidade, o sino da matriz tocou para a missa. Padre Cícero subiu ao púlpito. A viúva de Sebastião estava lá, no primeiro banco, segurando os filhos de rosto lavado e barriga cheia de água fresca. O padre olhou para ela, ela olhou para o padre. Nenhum dos dois precisou dizer uma palavra. O pacto de silêncio cobriu a igreja. O Padre Cícero não fez sermão sobre o pecado; ele leu o Eclesiastes: “Há tempo de matar e tempo de curar; tempo de derrubar e tempo de edificar”. O Coronel Epaminondas, humilhado e falido, vendeu o que sobrou das terras e foi morrer sozinho na capital. Dizem que Lampião foi um demônio, dizem que ele foi um herói, e há quem diga que, naquela noite, ele foi apenas a mão esquerda de Deus, fazendo o serviço sujo que a mão direita não podia fazer. No sertão, a linha que separa o santo do bandido é fina; às vezes ela é traçada na areia, e às vezes ela é apagada com sangue.