O sol escaldante de Pernambuco batia impiedoso no terreiro da fazenda, onde o leiloeiro erguia o braço suado, martelo em punho. Sete centavos pela mais bela da leva, quem dá mais pelo corpo de ébano que faz virar cabeças. Os fazendeiros murmuravam, olhos famintos fixos nela, pele reluzente como óleo de dendê, olhos que cortavam como faca de açueiro.
Mas o coronel Ramiro, de bigodes grisalhos e casaca impecável, ergueu apenas dois dedos, feito por 7 centavos. O martelo desabou. Ela era dele agora. Ninguém ousou contestar o homem que mandava naquelas terras como um deus menor. Os cavalos relincharam ao descerem a ladeira poeirenta, puxando a carroça onde ela se encolhia, algemas tilintando contra o madeira áspera.
O coronel montava à frente, gibão aberto ao vento quente, sem uma palavra. Atrás os peões coxixavam. Por que tão barata, coronel? Aquela é joia rara. Ele não respondeu. A fazenda surgiu no horizonte. Muralhas de taipa e canaviais infinitos, o ar carregado de fumaça de caldeiras. Dona Elvira, sua esposa há 20 anos, esperava na varanda leque na mão, rosto pálido sob o chapéu de palha.

Seus olhos estreitaram-se ao ver a nova aquisição descer descalça, saia rasgada, roçando os tornozelos. E ali, no terceiro instante de silêncio tenso, parecilhe essa história com quem precisa de tensão pura e comente de onde você está assistindo, do Brasil ou do mundo. Dona Elvira desceu os degraus rangentes, véus ondulando como fantasmas.
Ramiro, o que é isso? Uma serviçalha por preço de galinha para cuidar da casa, diz você. O coronel desmontou com um pulo seco, botas afundando na terra vermelha. Exato. Eu vira. A casa precisa de mãos leves. Os outros são brutos demais para os cristais e os lençóis. Ela circulou a escrava devagar, como a butre farejando presa.
Qual teu nome, moça? A resposta veio baixa, mas firme. Lúcia. Sim. Voz como mel escorrendo em ferro quente. Dona Elvira fungou. Lúcia, pois cuide do que é meu. Um erro e volta pro tronco. O coronel observava móvel um sorriso mínimo nos lábios. Naquela noite, a cozinha da cenzala fervia de sussurros. Lúcia esfregava o chão de pedra balde ao lado, enquanto as outras olhavam de viés.
Ele te levou por 7 centavos. Tu deve ter segredo podre, menina. Lúcia não ergueu o rosto. Seus dedos traçavam padrões invisíveis na água turva. Lá em cima, no quarto principal, o coronel trancava a porta. Dona Elvira escovava os cabelos longos diante do espelho, interrogando o reflexo do marido.
Por que ela, Ramiro, tem mais de 100 aqui? Bela demais paraa faxina. Ele se aproximou por trás, mãos nos ombros dela, frias como aço. Ciúme já eu vira. É só uma sombra na casa. Mas seus olhos no espelho traíam fome antiga. Dias se arrastaram como correntes enferrujadas. Lúcia movia-se pelos corredores da Casa Grande como vento noturno.
Varria salões, polia talheres de prata, dobrava toalhas com precisão de cirurgião. Os filhos do casal, dois rapazes crescidos, paravam para fitá-la nos jardins, conversas cortadas. Dona Elvira notava, instalava-se nas salas, vigiando cada passo. Mais rápido, Lúcia, os pratos não se limpam com preguiça. A escrava a sentia sempre calada, mas seus olhos capturavam tudo.
O retrato desbotado na parede, uma mulher de traços idênticos aos dela, jovem e risonha, ao lado de um Ramiro sem rugas. “Quem é ela?” “Sim ah,”, ousou perguntar uma vez ao passar pano no quadro. Dona Elvira gelou. Ninguém. Poeira do passado. O coronel começou a chamá-la à alcova secreta no sótam poeirento. Lúcia, traga o café forte.
Ela subia as escadas estreitas, bandeja equilibrada, coração batendo em compasso lento. Ele esperava sozinho. Charuto aceso, fumaça dançando em véus. Sente-se. Ordem suave, mas ferro. Ela obedeceu. Joelhos juntos. Você lembra alguém? Muito. Seus dedos roçaram o braço dela, leves como pluma. Lúcia não recuou. Senhor, vê fantasmas onde há carne. Ele riu baixo, ecuando nas vigas.
Lá embaixo, dona Elvira rondava, ouvidos atentos arrangidos, uma tempestade irrompeu uma semana depois. Raios rasgando o céu como chicotes. A casa tremia, canaviais se curvando ao vento uivante. Lucia preparava o jantar na cozinha escura, fogo crepitando. O coronel surgiu na porta, um capa encharcada. Vem comigo agora.
Ela largou a colher, seguiu-o aos estábulos. Cavalos bufavam nervosos. Monte atrás. Galoparam pela chuva para o barracão afastado, onde engenhos rangiam parados. Dentro ele acendeu uma lamparina. Aqui ninguém ouve. Seus olhos brilhavam febriz. Diga-me, você é filha dela? Lúcia parou, água pingando do vestido colado.
Filha de quem, senhor? Ele circundou-a devagar, como predador em jaula. da minha primeira, aquela do retrato, vendida há 20 anos, grávida. Eu procurei, mas você, os olhos, a boca. Lúcia riu. Som cortante como vidro quebrando. Senhor, compra memórias por 7 centavos. Barato demais. Ele agarrou seu pulso. Não brinque, prove.
Ela se soltou com um giro. Força inesperada. Eu sou Lúcia, vendida de porto em porto, mas sei de segredos que valem mais que ouro. A chuva martelava o telhado, isolando-os. Dona Elvira, Inson, saiu ao pátio encharcado, capa sobre os ombros. Viu os cavalos sumirem na escuridão. Ciúme corroía como acidez lenta. Correu ao quarto do coronel vazio.
Espiãoou pela janela da cenzala. Lúcia não estava. O peito dela apertou. O que ele trama? Voltou ao retrato, dedos traçando o rosto da rival morta. Amanheceu cinzento. Lúcia retornou primeiro, rosto impassível, preparando o mingal. Onde esteve, Dona Elvira sebilou sozinha na cozinha. Com o senhor ordens.
Mentira lisa, mas os olhos dela dançavam vitória sutil. O coronel intensificou as chamadas. Toda noite pretextos consertar uma fechadura, aquecer água para o banho. Dona Elvira instalava criadas fiéis nos cantos, mas Lúcia escorregava como sombra. Uma tarde nos jardins de goiabeiras, flagrou-os. Ele entregava a ela um colar de contas antigas, idêntico ao do retrato.
“Guarde! é seu por direito. Dona Elvira escondeu-se atrás da folhagem, coração galopando. Correu à casa revirando gavetas. Encontrou cartas amareladas, promessas de Ramiro à primeira esposa, juras de resgate da filha vendida. Então é isso. Uma bastarda fantasma. A tensão crescia como erva daninha. Os peões notavam o coronel distraído, chicoteando menos os campos.
Os filhos murmuravam sobre herança. Lúcia agora com quarto na casa grande para servir melhor, disse ele. Ouvia tudo pelas fras. Uma noite, dona Elvira confrontou o marido no salão, velas tremulando. Ela é a filha da tua rameira. Comprada para que, Ramiro? Para roubar o que é meu. Ele parou. Copo na mão. Cuidado, Elvira. Verdades machucam. Ela riu amarga.
Eu sei tudo, mas ela não passa de ilusão. Lúcia da escada ouvia cada sílaba. Seus lábios curvaram-se, o jogo virava. O coronel a chamou ao sótam novamente. Eu vira desconfia. Ela assentiu. Deixe comigo, senhor. Eu cuido. Ele hesitou pela primeira vez dúvida nos olhos. Lá fora, trovões rolavam distantes. Dona Elvira planejava no quarto.
Veneno no café. fuga não. Ela esperaria o erro deles. A fazenda pulsava com segredos não ditos. Lúcia movia peças invisíveis, aproximando-se do poder real. O coronel sonhava com redenção. Dona Elvira tramava defesa e a chuva voltava prometendo dilúvio. Nana chuva caía em lençóis grossos, transformando o solo da fazenda em lama pegajosa.
Lúcia observava da varanda, os pés descalços, firmes nas tábuas úmidas, enquanto o vento carregava o cheiro de terra revirada. Ela não tremia. Em vez disso, calculava. O coronel havia saído cedo montado em seu cavalo baio rumo à vila distante. Dona Elvira permanecia no quarto superior, as cortinas cerradas como pálpebras inchadas.
Lúcia entrou na cozinha, onde o fogo creptava baixo. Pegou o cesto de ervas secas, dedos ágeis, separando folhas de boldo das de hortelã. Não era hora de erros. Ela preparava o chá que o coronel tanto apreciava à noite, aquele que acalmava seus nervos após dias de negócios sombrios. Mas hoje adicionaria um toque sutil, uma raiz moída, fina, colhida no mato ao amanhecer, nada que matasse, apenas que abrisse portas na mente dele.
Enquanto moía, ouviu passos pesados no corredor. Zefa, a cozinheira idosa, surgiu na porta. Olhos estreitos como fendas. O que faz aí sozinha, menina? A mandou que eu preparasse tudo. Lúcia ergueu o olhar calmo, sorriso leve nos lábios cheios. Sin está descansando, Zefa. Eu cuido. O coronel gosta sim. Zefa bufou, mas recuou.
Sabia das mudanças. Desde que Lúcia chegara por aqueles sete centavos ridículos, as ordens fluíam dela. Se inscreva agora no canal. Compartilhe esta história com quem ama narrativas que prendem a alma e comente de onde você está assistindo. Brasil, Portugal, Angola. Sua interação faz a diferença para mais conteúdos assim.
A tarde arrastou-se em tons cinzentos. Lúcia varria o alpendre quando o coronel retornou. Capa encharcada pingando no chão. Desmontou com um gemido, costas curvadas pelo peso invisível. Lúcia chamou voz rouca. Ela aproximou-se devagar, estendendo uma toalha seca. Sim, senhor. Ele pegou a toalha, olhos fixos nos dela por um segundo a mais.
Havia algo ali, um reconhecimento que dona Euvira nunca vira. O dia foi longo. Prepare meu banho. Ela obedeceu, aquecendo água no fogão de lenha. Enquanto derramava baldes fumegantes na tina de madeira, o vapor subia como fantasmas. O coronel despiu a camisa, revelando cicatrizes antigas no peito, marcas de chicote de juventude rebelde.
Lúcia não desviou o olhar. Senhor, carrega o passado nas costas. murmurou voz baixa. Ele parou surpreso. “Como sabe?” Ela passou a esponja pelas omoplatas dele, movimentos precisos. “Os olhos contam histórias, senhor. Os seus falam de promessas quebradas.” Ele fechou os olhos, deixando a água levar atenção. Lúcia continuou, mente girando.
7 centavos, preço de uma galinha velha, mas ela valia ouro nos leilões da vila. Por quê? O boato corria baixo entre os escravos. O coronel a vira anos antes em uma fazenda rival e jurara resgatá-la. Redenção, diziam, mas Lúcia sabia melhor. Era posse. Uma beleza como a dela não era para limpar casa, era para quebrar correntes internas.
No andar de cima, dona Elvira espiava pela fresta da janela. Seus dedos apertavam o crucifixo no pescoço. Aquela sussurrou para si. Casada a 20 anos com o coronel, ela construíra aquela vida de linho fino e prata polida. Agora, uma escrava de pele lustrosa invadia tudo. Elvira desceu as escadas em silêncio, vel negro cobrindo os cabelos grisalhos.
Encontrou Lúcia dobrando roupas na lavanderia. Você venha cá. Lúcia ergueu-se devagar, sem subserviência excessiva. Sin Euvira, apontou o dedo sei o que trama. Acha que engana com chás e sorrisos? Ele é meu. Lúcia inclinou a cabeça, olhos inocentes. Eu só cuido da casa. Sim. Há como o senhor mandou. Eu vira a rio seco. Som como cascalho.
Casa. Ele te comprou por migalhas para quê? Diga. Lúcia baixou os olhos, mas um brilho traiçoeiro surgiu. Pergunte a ele, senh só a poeira que varre. A noite caiu pesada, trovões ecoando como tambores distantes. O coronel sentou-se à mesa da sala, vela tremeluzindo. Lúcia serviu o chá, vapor subindo em espirais.
Ele bebeu devagar, calor espalhando-se pelo corpo. “Você me lembra alguém?”, disse voz pastosa. Minha juventude, uma mulher na vila de São Bento. Lúcia sentou-se à frente dele, ousadia calculada. Conte-me, senhor. Ele hesitou, mas as palavras saíram. Anos antes, apaixonara-se por uma escrava livre, de beleza rara.
Tiveram um filho secreto, escondido em outra fazenda. Morrera jovem. A mãe fugira, mas Lúcia. Os olhos eram iguais. Ela ouviu, coração acelerando. Não era redenção, era herança. O coronel comprara-a por 7 centavos porque vira o sangue dele nela. Motivo para testá-la, moldá-la como herdeira disfarçada. “Você é minha chance de consertar”, murmurou ele, mão tocando a dela.
Lúcia a retirou devagar, mente afiada, poder real. Não como escrava, como rainha oculta. Dona Elvira, escondida atrás da porta, ouviu tudo. O mundo girou. Anos de lealdade, filhos mortos sem herdeiros homens. E agora isso? Uma bastarda comprada por trocados. Lágrimas quentes escorreram, mas ela secou rápido. Não haveria choro. Planejaria.
A chuva redobrou, inundando os campos. Lúcia deitou-se no catre do quarto dos escravos, mas não dormiu. Pensava no pai improvável, Zefa. roncava ao lado lá fora. Um grito abafado cortou à noite, um cavalo fugindo solto. Sinal? Ao amanhecer, o coronel acordou zons o chá fazendo efeito. Lúcia já preparava o café, ervas comuns.
Agora ele desceu, olhos turvos. Ontem falei demais. Ela sorriu. Segredos são cofres, senhor. Eu guardo. Ele assentiu aliviado, mas dona Elvira surgiu na porta. rosto pálido como cera. Precisamos conversar, marido. Sobre ela. A tensão esticou como corda de arco. O coronel franziu a testa. O quê? Euvira, apontou Lúcia.
Ela não é para casa, é armadilha. Lúcia ficou imóvel, balde na mão. O coronel riu baixo. Bobagem, mulher. Ela fica. Ouvira recuou, mas seus olhos prometiam tempestade maior que a chuva. Dias se arrastaram em dança sutil. Lúcia ganhava favores, tecidos finos para vestidos, permissão para ler os livros velhos da biblioteca.
O coronel contava histórias da guerra do Paraguai, voz embargada ao mencionar perdas. Eu mudei, Lúcia, que era o legado. Ela ouvia, tecendo laços. À noite sussurrava dúvidas em Zefa espalhando sementes. Sin a enlouquece sozinha. Eu vira isolada consultava o padre da capela vizinha em segredo. Ele a quer como filha, ou pior. O padre abençoava, mas alertava: “Cuidado, senhora.
Sangue fala mais alto que leis”. Ela voltava tramando. Comprou veneno disfarçado de remédio na vila, raízes que paralisam devagar. Uma noite durante o jantar, o coronel torciu forte, chá azedo na língua. Lúcia observou neutra. Euvira sorriu por trás do leque, mas ele se recuperou, culpando a humidade. Lúcia, amanhã vamos à vila. Você me acompanha? Euvira congelou.
Eu vou também. Ele negou. Não, descansa. A vila fervia com o mercado semanal. Lúcia, vestida em algodão claro, caminhava ao lado do coronel, olhares invejosos dos feirantes. Ele parou na ourovezaria, comprando um colar de coral. Para você, merece. Ela aceitou o frio na espinha, poder visível agora. De volta à fazenda, eu vi a esperava na varanda. Colar falso no pescoço.
Onde estavam? O coronel ignorou, indo para o escritório. Lúcia passou por ela, sussurrando. Sim, o tempo muda. Euvira agarrou seu braço. Saia daqui ou some. A ameaça pairou. Lúcia soltou-se devagar. Naquela noite, trovões ribombaram. O coronel sonhava com o passado, gemendo no sono. Lúcia velava à porta. Eu vira no quarto, moía raízes.
A fazenda rangia. segredos inchando como nuvens. Manhã trouxe sol fraco. Um mensageiro chegou a cavalo, poeira nos cascos. Coronel, problemas na divisa, invasores? Ele montou rápido, beijando a mão de Lúcia. Fique segura. Partiu com capangas sozinhas. As duas mulheres se encararam no pátio. Eu vira avançou.
Agora sem ele. Lúcia sorriu frio. Ele volta assimá e saberá. Assim ergueu a mão, tapa ecoando, mas Lúcia não caiu. Endireitou-se, olhos de aço. Toque de novo e veja. A rivalidade explodiu em silêncios cortantes. Elvira trancou suprimentos. Lúcia roubou chaves. Zefa escolhia lados, sussurrando para Lúcia. Senhor, te vê como sangue e noites de insônia, dias de olhares afiados.
O coronel retornou ao entardecer, ferido no braço, arranhão de espinho, líquido rubro enfaixado. Lúcia cuidou, curativos precisos. Obrigado, filha, escapou-lhe. Eu vira o viu da escada. O mundo desabou. Ela correu para o quarto crucifixo apertado. Tarde demais. O motivo revelado. Não escrava para casa, herdeira para império.
A fazenda pulsava mais forte. Chuvas eternas no horizonte, segredos prontos para dilúvio final. A esposa apertava o rosário entre os dedos ossudos, o coração partido ecoando como trovão distante. Tarde demais. O motivo revelado, não escrava para casa, herdeira para império. A fazenda pulsava mais forte.
Chuvas eternas no horizonte, segredos prontos para dilúvio final. Isabela, a suposta escrava, movia-se pelos corredores da Casa Grande, com passos que já não eram de serva. Seus olhos, negros como a terra úmida do cafezal, varriam os móveis de jacarandá polido. O coronel Ramiro a observava da varanda, charuto entre os dentes, fumaça subindo em espirais preguiçosas.
Ele havia pago sete centavos por ela no leilão de Salvador, um preço de miséria para uma beleza que virava cabeças até nos salões do rio. Mas ninguém sabia, nem a esposa, dona Clara, com seus vestidos de linho engomado e toucas bordadas. Clara desceu as escadas rangentes, o vestido roçando o piso de tacos.
A chuva começava a martelar o telhado de telhas coloniais. um ritmo insistente que acelerava seu pulso. Ela havia encontrado o testamento escondido na gaveta do escrivaninha do marido, sob pilhas de recibos de safra. Palavras frias: Isabela, filha legítima, herdeira universal da fazenda Santa Cruz, filha legítima. A escrava comprada como qualquer outra carregava sangue do coronel, um filho bastardo escondido por décadas nas cenzalas distantes.
Ramiro, a voz dela cortou o ar úmido como uma navalha. Ele virou-se devagar, o rosto marcado por anos de sol e decisões implacáveis. Clara, o que o perturba agora? Ela jogou o papel no chão, a tinta borrando com as primeiras gotas que vazavam do teto. Isabela parou no umbral da cozinha, lenço na cabeça, mas postura ereta como uma ciná.
Isso, sua herdeira, comprada por trocados para limpar pratos, mas agora para roubar tudo que construímos. O coronel apagou o charuto no balaústre, faíscas dançando brevemente. Construímos. Você fala da fazenda que herdei de meu pai, que multipliquei com suor e noite sem dormir. Isabela é sangue meu.

De uma noite em Pernambuco anos atrás escondia para protegê-la. Agora, com os credores batendo à porta, ela garante o futuro. Clara riu, um som seco, sem humor. Seus olhos fixaram-se em Isabela, que permanecia imóvel, mãos cruzadas sobre o avental imaculado. Futuro. Você a trouxe para cá como troféu. Eu via os olhares, as roupas novas, as joias que caíam no quarto dela.
Isabela interveio pela primeira vez. Voz suave, mas firme, com sotaque nordestino polido por anos de silêncio forçado. Senhora, não pedi isso. Vim porque ele mandou, mas sangue não mente. A chuva engrossava, transformando o pátio em lama. Escravos corriam para cobrir as carroças de café, chicotes estalando no ar carregado. Clara sentiu o chão tremer sob seus pés.
A fazenda, com seus 500 alqueires de cana e café era seu mundo. Sem herdeiro homem, os filhos mortos jovens por febres, ela havia gerido as contas, negociado com mascates, enfrentado secas, agora uma intrusa. No dia seguinte, o sol furou as nuvens, mas o ar cheirava a terra revirada. Clara convocou o capataz, Zé Mulato, homem de pele curtida e cicatrizes nos braços.
Vigia, todo passo. Se ela sair da casa grande, alerte-me. Zé assentiu, olhos baixos. Ele sabia dos rumores. O coronel planejava casar Isabela com o filho do barão vizinho, unindo terras, império dobrado. Isabela, alheia aos olhos que a seguiam, caminhava pelo orvalho dos cafezais.
Seus pés descalços afundavam na terra vermelha memória de cenzalas passadas. Ela carregava um segredo maior, cartas de um advogado em Recife, provando não só filiação, mas uma herança de terras no norte perdidas em disputas antigas. O coronel a queria para silenciar isso, absorver tudo. Clara observava de longe, binóculo de teatro na mão.
Tensão crescia como se pós-scantes. À noite, confrontos sussurrados. Por que agora, Ramiro? Depois de 30 anos casados, ele bebia cachaça pura, copo te lintando na mesa de jantar. Porque o fim se aproxima, Clara, doenças nos ossos. A fazenda precisa de mãos firmes. Você é forte, mas mulher. Os bancos querem garantias. Ela apertou os talheres.
E eu, o que sobra para mim? Uma dote generosa, vá para a cidade. Viva como sinh, sem preocupações. A recusa veio como um tapa. Isabela ouvia pelas frestas coração acelerado. Ela não queria o império sujo de correntes, queria liberdade e terras próprias. A chuva voltou feroz, transformando riachos em torrentes.
Uma noite, trovões ribombando. Clara trancou a porta do quarto de Isabela. O coronel, febril na cama murmurava delírios. Minha menina herdeira. Clara sentou-se ao lado dele, Rosário girando. Você plantou isso, agora colha. Mas o plano dela era outro. Amanheceu com Zé Mulato batendo a porta. Isabela sumira.
Portão cavalo selado, desaparecido, pânico na casa grande. O coronel, de pé pela primeira vez em dias, gritou ordens. Cavalos galoparam pela mata, lampiões balançando. Encontraram-na nucais do porto improvisado, mala na mão, negociando passagem com um barqueiro. “Volte”, berrou o coronel, cavalo bufando.
Isabela virou-se, chuva colando o vestido ao corpo. Não sou sua escrava, pai, nem sua herdeira. As cartas provam: “Terras minhas em Pernambuco, livre”. Clara chegou por último, montada num palafrém, rosto pálido. Deixe- a ir, Ramiro, ou perca tudo. Ele hesitou, olhos em chamas. O barqueiro isou as velas. Isabela embarcou silhueta contra o rio inchado.
A fazenda pulsava ainda mais fraca. O coronel, curvado, voltou à varanda. Clara aproximou-se mão no ombro dele. Agora nós dois reformaremos o testamento. Eu gerencio até o fim. Ele assentiu exausto. Chuva lavava os telhados segredos diluídos na terra. Meses depois, a fazenda resistia. Clara negociava dívidas, vendia lotes periféricos. O coronel partiu em paz.
Testamento alterado. Tudo para ela com cláusula para empregados fiéis. Isabela em Recife montava seu pequeno império, cartas trocadas em segredo com Clara, aliadas improváveis. A tensão dissolveu-se em rotina dura. Nenhuma vitória fácil, apenas sobrevivência, tecida em fios de astúcia e tempo. Ei, se essa história te prendeu até aqui, inscreva-se no canal agora, ative o sininho, compartilhe com os amigos e comente aí embaixo: “De onde você está assistindo, Brasil, Portugal ou Alémar? Sua interação faz o algoritmo nos
impulsionar. A fazenda Santa Cruz, sob chuvas cíclicas seguia seu pulso eterno. Ias improváveis, impérios reescritos.