A caminho da entrevista de emprego dos seus sonhos, um jovem negro vê uma senhora idosa desmaiar dentro de um ônibus lotado. Quando o motorista, sem nenhuma compaixão, obriga a mulher a descer em um ponto isolado, ele simplesmente não consegue ficar parado. Desce correndo do ônibus, ajuda a idosa e a acompanha até o hospital, mesmo sabendo que isso pode custar sua grande chance profissional.
Mas quando a sensação de derrota começa a apertar o peito, chega um e-mail inesperado. O filho daquela mulher, justamente o homem que ele deveria conhecer naquele dia, o encontra com uma proposta maior do que tudo o que ele um dia imaginou. Antes de continuar essa história, conta para a gente de onde você está assistindo. E não se esqueça de se inscrever para receber todos os dias mais histórias que aquecem o coração.

O som agudo do despertador cortou o silêncio da madrugada às 5:47. A mão de Lucas Ferreira saiu debaixo da coberta fina e apertou o botão, desligando o aparelho antes que o segundo toque pudesse acordar a irmãzinha no quarto ao lado. Ele ficou alguns segundos imóvel, olhando a mancha de umidade no teto, um desenho marrom que tinha aumentado depois da chuva forte da semana anterior. O proprietário do imóvel ainda não havia retornado suas ligações.
O kitinete estava gelado. As madrugadas de fim de outono em São Paulo tinham um jeito próprio de atravessar a janela malvedada. Por mais jornal e fita adesiva que ele colocasse nas frestas, Lucas soltou o ar devagar, vendo o próprio fôlego formar uma pequena nuvem na luz fraca que passava pelas cortinas poídas.
Tirou as pernas da cama, os pés tocaram o tapete gasto e ele caminhou arrastando passos até a pequena cozinha. A cafeteira elétrica, comprada usada em um brechó do bairro por poucos reais, chiou e borbulhou quando ele encheu o reservatório de água. Enquanto o café passava, Lucas empurrou com cuidado a porta do quarto onde dormia Ana, de 8 anos. O corpo pequeno dela quase não marcava o colchão de solteiro. A menina abraçava um urso de pelúcia com um olho faltando, presente de uma campanha solidária da igreja de três natais atrás. O peito de Lucas apertou. Ela merecia muito mais do que aquilo.
De volta à cozinha, ele se serviu de uma caneca de café ralo e amargo, esticado para durar a semana inteira, e pegou o notebook. A tela piscou até acender de vez, exibindo o e-mail que ele já tinha lido pelo menos uma dúzia de vezes. Assunto: convite para entrevista. Vaga analista de dados júnior.
A Horizonte Tecnologia era uma das empresas de tecnologia que mais cresciam em São Paulo, o tipo de lugar que poderia mudar tudo. Só o salário inicial em torno de R$ 7.000 significaria um apartamento de verdade, um quarto só para Ana com uma porta de verdade, talvez até começar a guardar dinheiro para a faculdade dela.
Lucas fechou os olhos e a lembrança veio, como sempre acontecia nos momentos de silêncio, a imagem de seu pai, Roberto Ferreira, caindo no estacionamento do depósito onde trabalha em turnos dobrados durante 15 anos. O infarto veio três semanas depois de ser ignorado mais uma vez para uma promoção. O médico disse que era stress. Lucas sabia que era mais do que isso. Era o peso de ser constantemente invisível, o cansaço de trabalhar o dobro para receber metade do reconhecimento. “Homens negros precisam ser duas vezes melhores para chegar metade do caminho”, o pai dissera uma vez com a voz carregada de uma vida inteira de tentativas. “Nunca se esqueça disso, filho.” Lucas não esqueceu. Carregava aquelas palavras como uma pedra no peito.
Olhou para a pilha de contas em cima da bancada. Luz, internet, aluguel. A conta de energia tinha um carimbo vermelho no topo: Aviso de corte. Ele tinha três dias para pagar tudo ou ficariam sem eletricidade. O salário do trabalho de meio período no depósito não dava conta, nunca dava. Mas aquele dia podia mudar isso.
Com cuidado, Lucas pendurou seu único terno bom, um conjunto azul-marinho que tinha sido do pai, e o acompanhara em entrevistas e reuniões importantes em um cabide. Ele havia passado a roupa na noite anterior, alisando cada amassado até quase parecer nova. O currículo estava impresso em papel creme e guardado em uma pasta comprada especialmente para aquela ocasião.
Pegou o celular. O ônibus passaria às 7:45. A entrevista seria no centro a cerca de 40 minutos de viagem. Se o trânsito ajudasse, ele chegaria às 8:30, com tempo de sobra para se acalmar. Talvez tomar um café simples em alguma padaria e entrar confiante. Estava tudo planejado, tudo pronto.
Ana se mexeu no quarto. Lucas se aproximou e afastou com delicadeza uma mecha de cabelo do rosto dela. A menina piscou, despertando, os olhos castanhos focando aos poucos. “Bom dia, pequena”, sussurrou. “Hoje é o grande dia”, murmurou ela, ainda meio sonolenta. “É, hoje é o dia”. Ela sorriu e o abraçou pelo pescoço. “Você vai conseguir, Lucas. Você é a pessoa mais inteligente que eu conheço.” Ele a apertou junto ao peito, sentindo o cheiro de shampoo barato que os dois dividiam. “Vou mudar a nossa vida, eu prometo.” “Eu sei que vai.” Lucas beijou a testa da irmã e se levantou, sentindo a própria determinação endurecer por dentro. “Hoje é o dia, aconteça o que acontecer”, repetiu baixinho, mais para si mesmo do que para ela.
O ônibus da linha 56 já estava cheio. Quando Lucas subiu às 7:47, ele foi avançando pelo corredor estreito com a pasta prensada contra o peito, protegendo os papéis da multidão. O ar dentro do veículo era pesado, uma mistura de suor, desodorante forte e o cheiro persistente de sanduíche de fast food de alguém. As luzes fluorescentes piscavam de vez em quando, deixando tudo com um tom amarelado e cansado.
Ele encontrou um lugar perto do fundo, em pé, segurando a barra superior com uma mão. Ao redor, a gente trabalhadora de São Paulo se apertava num convívio forçado. Uma mulher com uniforme de hospital mexendo no celular, um pedreiro com calça manchada de tinta olhando pela janela, um adolescente de fone de ouvido balançando a cabeça ao som de uma música que só ele ouvia.
Lucas pegou o celular e abriu o aplicativo de anotações, revisando as respostas que havia preparado para as perguntas mais comuns de entrevista. Fale sobre você, por que trabalhar na Horizonte Tecnologia? Qual é o seu maior ponto fraco? Ele havia treinado cada resposta até que parecessem naturais, não decoradas. O ônibus seguia aos solavancos – para e anda no trânsito da manhã. Lucas checou o relógio. 8:13. Ainda estava dentro do horário.
Perto da frente, em um dos assentos preferenciais, estava sentada uma senhora branca de idade avançada. Parecia ter mais de 70 anos, com cabelos prateados, presos num coque simples e um casaco de lã bem usado, o rosto marcado por rugas profundas. Ela segurava uma bolsa de couro gasta no colo com as duas mãos. Havia algo digno na postura dela, apesar do desconforto evidente, a forma como mudava o peso do corpo, a pequena careta quando o ônibus passava em um buraco. Essa era Helena Costa. Durante 42 anos tinha sido professora. Lucas ainda não sabia disso, mas logo descobriria. O que ele sabia naquele momento é que ela parecia exausta, cansada até os ossos.
O motorista, um homem robusto, com expressão permanentemente irritada, resmungava no rádio reclamando do trânsito. Os passageiros se balançavam a cada freada como parte de uma coreografia coletiva do transporte público.
Às 8:17, quando o ônibus se aproximava de um grande cruzamento no centro, um carro entrou bruscamente na frente. O motorista pisou no freio de repente. Tudo aconteceu ao mesmo tempo, mas pareceu em câmera lenta. Helena, que tentava ajeitar a postura para aliviar a dor nas costas, não estava preparada. A freada brusca a lançou para a frente. As mãos perderam o apoio da bolsa. Ela foi arremessada do banco para o chão de borracha com um baque seco, caindo com toda a força sobre o quadril. O grito de dor dela foi alto e inconfundível, cortando o ruído constante do ônibus como uma lâmina.
Por alguns instantes, tudo ficou em suspenso. Depois veio aquele movimento desconfortável – olhares se desviando, gente fingindo não ver. A mulher de uniforme de hospital fez uma careta, mas não se levantou. O pedreiro olhou, depois voltou para a janela. O adolescente nem tirou os fones. O motorista continuou sentado. Olhou pelo retrovisor, o rosto ficando mais duro.
“Dona, não posso deixar a senhora caindo aqui dentro”, resmungou. “Eu… eu estou bem”, tentou dizer Helena, tentando se erguer, mas o rosto se contorceu de dor. “Acho que machuquei o quadril. Só preciso de…” “Não vou arriscar levar processo, dona”, disse ele num tom frio. “Regra da empresa. Se a senhora está machucada, precisa descer no próximo ponto.” “Mas aqui não tem ponto, vai ser agora.” O ônibus voltou a andar e Helena segurou um soluço. Com muito esforço, ficou de joelhos, tremendo.
Duas quadras depois, o motorista encostou em uma esquina qualquer, longe de um ponto oficial, e abriu as portas. “Chegou a sua vez, dona”, anunciou. Ninguém a ajudou a se levantar. Ninguém ofereceu a mão.
Lucas observava lá do fundo com o maxilar travado. Olhou o relógio. 8:21. O ônibus chegaria ao ponto dele em uns 12 minutos. De lá até a sede da Horizonte seriam mais 5 minutos de caminhada. Ainda daria tempo de tomar um café, respirar fundo e entrar impressionando. Helena foi mancando em direção às portas, apoiando-se nos bancos. Cada passo custava uma força absurda. Quando alcançou a escada, olhou a distância entre o degrau e a calçada, larga demais para o corpo dolorido, e hesitou. O motorista suspirou impaciente. “Vamos, dona. Tenho horário a cumprir.” Ela desceu devagar, respirando com dificuldade. Ao pisar na calçada, tropeçou de leve e se agarrou em um poste próximo. As portas se fecharam com força. O ônibus arrancou.
Lucas ficou parado, olhando pela janela a senhora agora sozinha em um trecho deserto da rua. Os prédios por ali eram, em sua maioria, galpões e lojas fechadas. Não havia padarias nem movimento, só calçadas vazias e o som distante dos carros. A mão dele apertou a pasta, os olhos voltaram ao relógio. 8:22. Depois outra vez para Helena, que agora se sentava no meio-fio levando as mãos ao rosto. O ônibus acelerou.
O coração de Lucas disparou. A mente começou a fazer contas. Cada minuto que passava, cada quarteirão que se afastava, era um passo mais perto do futuro que ele buscava. Aquela entrevista era a oportunidade, talvez a única, mas a imagem de Helena sozinha, com dor, ficou presa na consciência dele. Pensou no pai caindo no estacionamento. Pensou em Ana, confiando que ele faria tudo melhorar. Pensou no tipo de homem que queria ser.
“Motorista! Para o ônibus!”, gritou Lucas, se empurrando pelo corredor. “Por favor, para o ônibus!” O motorista o encarou pelo retrovisor. “Preciso descer agora.” “Aqui não tem ponto”, respondeu o motorista. “Eu preciso descer agora.” Havia algo na voz de Lucas que acabou convencendo o homem. Resmungando, ele encostou o ônibus e abriu as portas. Lucas não esperou, pulou para a calçada e começou a correr na direção oposta, refazendo o caminho. Atrás dele, o ônibus foi embora, levando junto todos os planos bem alinhados daquela manhã.
Quando chegou até Helena, ela estava sentada no meio-fio, encostando as costas em uma parede cheia de grafites. O rosto estava pálido e a respiração vinha em sopros curtos, medidos, como se cada movimento acentuasse a dor.
“Senhora”, chamou ele, diminuindo o passo. “A senhora está bem?” Ela ergueu o rosto, assustada, os olhos azuis marejados se abrindo um pouco mais ao ver um jovem negro de terno correndo em sua direção. Por uma fração de segundo, Lucas viu o brilho do medo, a atenção automática. Ele já tinha visto aquilo muitas vezes, não o surpreendia mais, mas ainda doía.
Ele parou a uma distância respeitosa e levantou uma das mãos, ainda segurando a pasta com a outra. “Eu estava no ônibus. Eu vi o que aconteceu. Não quero fazer nada de ruim. Só quero ajudar, se for possível.” A expressão de Helena suavizou. A vergonha tomou o lugar do medo. “Me desculpe”, murmurou. “Eu não quis…” “Está tudo bem”, disse Lucas com calma. “A senhora se machucou muito.” “Meu quadril.” Ela levou a mão ao lado do corpo com cuidado. “Acho que desta vez machuquei de verdade. Já vinha incomodando há algum tempo, mas agora…” A frase se perdeu num gemido de dor que tomou o rosto dela.
Lucas se agachou, mantendo a distância. “A senhora precisa ser atendida. Tem alguém para quem possamos ligar?” “Meu filho, mas ele está em reunião. Ele está sempre em reuniões.” Riu sem humor. “Eu só estava tentando chegar ao abrigo de crianças lá na zona norte. Sou voluntária lá. Eles devem estar me esperando.”
Lucas olhou ao redor. A rua estava quase deserta. Pegou o celular e abriu um aplicativo de transporte. Previsão de chegada: 38 minutos. Tentou outro, 45 minutos. “Ah, não”, murmurou. Checou o relógio. 8:33. A entrevista seria em 27 minutos. Ligou para a primeira cooperativa de táxi da lista de contatos. A atendente parecia entediada. “Posso mandar um carro em mais ou menos uma hora?” “Uma hora? É uma emergência.” “Sinto muito, senhor. Horário de pico. É o melhor que consigo.”
Lucas desligou, sentindo a frustração apertar o peito. Olhou para Helena, que tremia apesar do casaco. O vento tinha ficado mais frio, trazendo a promessa de chuva. “Certo”, disse tomando uma decisão. “Vamos levá-la a um hospital.” “Mas como? Isso é muito caro.” “Com todo respeito, acho que a senhora não tem muita escolha. Eu vou dar um jeito.”
Com muito esforço e bastante dor, Helena conseguiu se levantar com o apoio de Lucas. Ele foi cuidadoso, atento à lesão. “Tem um ponto de ônibus com banco ali na próxima quadra”, disse Lucas apontando. “Vamos sentar a senhora lá enquanto chamo uma ambulância.” “Ambulância? Não, isso é muito caro.” “Com todo respeito, acho que a senhora não tem muita escolha.”
Eles caminharam devagar, praticamente com Lucas carregando parte do peso dela. No meio do caminho, o céu abriu e uma garoa fria começou a cair, encharcando as roupas em segundos. Lucas tirou o paletó, o paletó do pai, e colocou sobre os ombros de Helena. “Não precisa, está tudo bem, eu aguento.”
Quando chegaram ao banco, os dois estavam molhados. Lucas ligou para o 192, passando a localização. “Quanto tempo até chegar?”, perguntou. “Temos uma equipe a caminho, aproximadamente 15 minutos.” Ele desligou e sentou ao lado dela, a calça social encharcada na superfície fria. Olhou o relógio. 8:48. A entrevista já havia começado há 3 minutos.
Pegou o celular e abriu o e-mail, os dedos parados sobre o teclado. O que poderia escrever? Desculpe, me atrasei porque fui ajudar uma senhora que caiu do ônibus. Ele não esperava resposta. Enviou um e-mail curto, pedindo desculpas por não ter conseguido comparecer, dizendo que tivera uma emergência na família.
Por volta das 11:30, uma enfermeira se aproximou. “Senhor Ferreira,” ele levantou na mesma hora. “Sim, ela está bem. A senhora Helena está estável. Ela teve uma fratura no quadril, não é completamente quebrado, mas o suficiente para exigir tempo de recuperação. Vamos mantê-la em observação e é provável que precise de cirurgia nos próximos dias. Ela está perguntando pelo senhor.”
Lucas seguiu a enfermeira por um labirinto de corredores até um quarto na área de observação. Helena estava recostada na cama, parecendo pequena e frágil entre os lençóis brancos. Seus olhos se iluminaram quando o viram. “Você ficou?” Disse ela. “Eu não conseguiria ir embora deixando a senhora sozinha”. Lucas puxou uma cadeira e se sentou, soltando um suspiro.
“Você já fez muito mais do que qualquer pessoa poderia esperar”, murmurou ela. Ele deu de ombros, sem saber o que responder. “Como a senhora está se sentindo?” “Como se tivesse sido atropelada por um ônibus, o que é um pouco irônico.” Tentou brincar com um sorriso fraco. “O médico disse que vou precisar de cirurgia e de alguns meses de fisioterapia. Na minha idade, isso, bem, não é o ideal, mas já passei por coisas piores.”
Os dois ficaram em silêncio por alguns instantes. “Eu fui professora”, comentou Helena de repente. “Ensino fundamental, principalmente quinto ano. Dei aula durante 42 anos na escola municipal Vila Esperança, na zona leste. Foi a minha vida.” Ela sorriu lembrando. “Meu marido, João, dizia que eu amava aqueles alunos mais do que amava ele. Talvez, de certa forma, ele não estivesse totalmente errado. Quando a gente vê uma criança lutando e de repente encontra a chave que abre o potencial dela, aquele momento em que finalmente entende algo que vinha tentando há tempos… não tem sensação igual.”
“Parece que a senhora foi uma professora muito boa.” “Eu tentei ser”, respondeu Helena. “Vi passar pela minha sala crianças de todos os tipos que você imaginar. Algumas com tudo garantido, outras só com a roupa do corpo. Mas o que aprendi em todos aqueles anos é que a bondade não tem cor nem classe social. Gente boa vem de todo lugar e se parece com qualquer pessoa.”
Lucas assentiu devagar. “Nem todo mundo acredita nisso”, murmurou. “Não”, concordou Helena em voz baixa. “Não acredita mesmo. E essa é uma das grandes falhas da nossa sociedade. Achar que pode medir o valor de alguém pela cor da pele ou pelo tamanho do saldo bancário.” Ela o encarou com firmeza. “Você abriu mão de algo importante hoje para me ajudar, não foi?” “Isso não importa.” “Importa sim. Importa porque você fez mesmo assim. Porque quando todo mundo escolheu olhar para o outro lado, você não fez isso.” A voz dela tremeu um pouco. “Porque você voltou por mim?”
Era a segunda vez que ela fazia a pergunta. Lucas se recostou na cadeira, procurando palavras para explicar algo que parecia grande demais para caber em frases. “Meu pai…”, começou devagar. “Ele trabalhou a vida inteira para provar que merecia estar onde estava, tentando conquistar um respeito que deveria ter sido dado a ele desde o princípio. Nunca conseguiu e quando morreu, ninguém daquele depósito foi ao velório. Ninguém.” A mão de Helena procurou a dele, passando por cima da grade da cama. “Eu me prometi que não seria assim, que não deixaria o mundo me endurecer. E quando vi a senhora naquela calçada sozinha e com dor, eu sabia que se fosse embora estaria fazendo com a senhora o que fizeram com ele.” “Sinto muito pelo seu pai.” “Eu também”, respondeu Lucas com um sorriso triste.

Antes que pudessem dizer qualquer outra coisa, a porta se abriu. Um homem alto, de terno caro e celular preso à orelha entrou apressado. “Eu entendo, Carla, mas diga a eles que não vamos assinar nada até o jurídico confirmar tudo.” “Não me importa se…” Ele interrompeu a frase ao ver Helena. “Mãe, Ricardo”, disse Helena, o rosto iluminado. “Eu estou bem, meu filho. Estou bem.”
Ricardo Costa, diretor-presidente da Horizonte Tecnologia. Embora Lucas ainda não soubesse, Ricardo encerrou a ligação e foi até a cama da mãe. Parecia por volta dos 50 anos, com alguns fios grisalhos nas têmporas e aquele tipo de postura segura que se conquista depois de anos tomando decisões que afetam a vida de muita gente. “Mãe”, disse ele com a voz tensa. “Disseram que você caiu, que vai precisar de cirurgia.” “Não é tão grave quanto parece.” “Não é grave, mãe. Você fraturou o quadril. Eu vou me recuperar. Estou com bons médicos.”
Os olhos de Ricardo então se voltaram para Lucas, que tinha se levantado automaticamente quando ele entrou, sentindo o peso daquele olhar acostumado ao poder. “E esse é…” Antes que Lucas pudesse responder, Helena se adiantou. “Este é o Lucas Ferreira. Ele me salvou, Ricardo. Eu caí dentro do ônibus e o motorista me deixou jogada na rua. O Lucas desceu atrás de mim e ficou comigo. Chamou a ambulância. Veio até aqui. Está a manhã inteira no hospital para ter certeza de que eu estaria bem.”
A expressão de Ricardo mudou, passando por surpresa, desconfiança e, por fim, algo que lembrava respeito. Ele estendeu a mão. “Muito obrigado mesmo.” Lucas apertou a mão dele. “Só fiz o que qualquer pessoa deveria fazer.” “Mas o que a maioria não faria”, respondeu Ricardo. Ele puxou a carteira, procurando por dinheiro. “Por favor, deixe eu pelo menos te compensar pelo transtorno, pelo tempo perdido.” “Não.” A palavra saiu mais seca do que Lucas pretendia. Ele então suavizou o tom. “Não, obrigado. Eu não quero dinheiro. Só queria ter certeza de que sua mãe estaria segura.”
Ricardo manteve a carteira aberta por alguns segundos, estudando o rosto de Lucas, e depois a fechou lentamente, guardando de volta no bolso. “Está bem, mas se eu puder fazer alguma coisa por você…” “Não é necessário”, insistiu Lucas. Ele olhou o relógio. Já estava ficando bem tarde. “É melhor eu ir. Vou deixar vocês à vontade.” “Espere”, pediu Helena, estendendo a mão. “Pelo menos me deixe seu telefone. Eu quero manter contato se você concordar.” Lucas hesitou, depois assentiu. Anotou o número em um bloco perto da cama. “Cuide-se, dona Helena.” “Você também, Lucas. E obrigada por ter parado por mim, por ter enxergado alguém que todo mundo ignorou.” Ele apenas assentiu mais uma vez e caminhou até a porta. A pasta, a pasta que ele tinha preparado com tanto cuidado, ainda estava na cadeira em que havia se sentado. Ele a pegou. As bordas molhadas agora estavam onduladas e deformadas.
Quando caminhava pelo corredor em direção ao elevador, ouviu a voz de Ricardo atrás de si. “Espere!” Lucas se virou. Ricardo estava no corredor, desta vez sem tanta segurança no rosto. “Eu não perguntei seu sobrenome.” “Ferreira. Lucas Ferreira.” “Senhor Ferreira, eu falei sério. Se um dia eu puder ajudar em alguma coisa…” “Não é necessário”, respondeu Lucas, desta vez mais calmo. “Só cuide bem da sua mãe. Ela é uma boa pessoa.” As portas do elevador se abriram. Lucas entrou e a última imagem que teve antes das portas se fecharem foi a de Ricardo parado ali, olhando para ele com uma expressão difícil de traduzir.
A pasta nas mãos de Lucas estava arruinada, o terno amarrotado e seco em manchas irregulares. O celular mostrava três ligações perdidas da agência de empregos temporários, oferecendo turnos extras em serviços pesados, trabalhos que mal cobririam a conta de luz. Ainda assim, enquanto o elevador descia, ele sentiu algo que não esperava: Paz.
Independentemente do que viesse depois, ele tinha tomado uma decisão com a qual poderia conviver. Em um mundo que parecia se esforçar para desgastar a dignidade e a bondade das pessoas, ele tinha conseguido preservar as duas. Por enquanto, isso teria que bastar.
Naquela tarde, Lucas se sentou à mesa pequena da cozinha, frente a frente com Ana. Entre eles, dois pratos de macarrão instantâneo, o pacote mais barato comprado em promoção. Ele havia colocado um ovo frito em cada prato, seu único luxo. “Como foi a escola hoje?”, perguntou, tentando soar animado, apesar do cansaço que começava a pesar no corpo. “Foi boa. A professora disse que eu sou muito boa em matemática. A gente viu frações hoje”, respondeu Ana orgulhosa. “Essa é a minha menina, inteligente como o irmão.” A menina mexeu o macarrão com o garfo e depois de alguns segundos o olhou com aqueles olhos atentos, maduros demais para a idade. “Você conseguiu o emprego?”
Lucas hesitou. Tinha passado parte da tarde pensando em como explicaria aquilo, sem destruir a esperança dela. “Eu não cheguei à entrevista.” “Por quê?” “Porque precisei ajudar alguém. Uma senhora caiu no ônibus e todo mundo fingiu que não viu. Eu não consegui fazer o mesmo.” “Então você ajudou ela em vez de ir para a entrevista?” “Foi.” Ana ficou em silêncio por alguns instantes, absorvendo a informação. Depois esticou a mão por cima da mesa e colocou sobre a mão dele. “O papai sempre dizia que fazer o que é certo nem sempre deixa a gente feliz na hora, mas sempre deixa a gente em paz depois. Você lembra?” “Lembro.” “Então você fez o certo, mesmo que a gente tenha que comer macarrão instantâneo mais um mês.” Ela apertou a mão dele. Ainda assim, terminaram a refeição em um silêncio pesado, mas tranquilo.
Lucas estava ajudando Ana com a lição de casa quando o celular vibrou com a notificação de um novo e-mail. Ele quase ignorou. Devia ser outra recusa ou alguma oferta de turno noturno carregando caixas, mas algo o fez olhar. Assunto: Entrevista reagendada – Horizonte Tecnologia.
Prezado Sr. Ferreira. Entendemos que o senhor teve uma emergência familiar esta manhã, o que o impediu de comparecer à entrevista marcada. Gostaríamos de oferecer a oportunidade de reagendar para segunda-feira, 25 de março, às 9h. Por favor, confirme sua disponibilidade. Atenciosamente, Carla Mendes, Assistente Executiva Horizonte Tecnologia.
Lucas leu três vezes, certo de que estava entendendo errado. Empresas não reagendavam entrevistas que a pessoa havia perdido. Elas simplesmente seguiam para o próximo candidato. Era assim que o jogo funcionava, uma chance. E se você perdesse, azar.
Ana o observava curiosa. “O que foi?” “Estão me dando outra chance”, disse ele quase num sussurro. “A entrevista. Eles querem marcar de novo.” O rosto da menina se abriu num sorriso enorme. “Viu? O papai tinha razão. Coisas boas acontecem com pessoas que fazem coisas boas.”
Lucas abraçou a irmã, sentindo os olhos arderem com lágrimas que ele insistiu em conter. Talvez ele estivesse certo, sim. Naquela noite, depois de colocar Ana para dormir, Lucas ficou parado diante da janela do apartamento, observando os prédios de São Paulo à distância. Em algum lugar, no meio daqueles edifícios de vidro, estava a sede da Horizonte Tecnologia. E na segunda-feira ele teria outra oportunidade de mudar suas vidas.
Ele não sabia porque tinha ganhado essa segunda chance. Não sabia que seu currículo amassado terminara nas mãos do diretor-presidente. Não sabia que Helena tinha passado a noite contando ao filho a história de um jovem que abriu mão da própria entrevista para não abandonar uma desconhecida caída na rua. Tudo o que ele sabia é que talvez às vezes o universo prestasse atenção aos pequenos gestos de bondade que ninguém enxerga. “Às vezes”, sussurrou para si mesmo, lembrando das palavras da irmã, “os milagres são só consequências da bondade.” E pela primeira vez em muito tempo, Lucas Ferreira permitiu que a esperança voltasse a fazer parte de sua vida.