No coração do Vale do Paraíba, onde os cafezais cortavam as encostas como um mar de verde ondulante, havia uma propriedade cujo nome fazia tremer tanto quanto sugeria poder. Santa Rita. Seu dono, o coronel Vicente Almeida Prado, era a figura inconteste da região, proprietário de vastas terras, reconhecido pelo seu prestígio e temido pela dureza com que tratava os que viviam sob seu comando.
A casa grande dominava paisagem. A cenzala, escondida por trás da sombra das árvores, guardava a presença invisível, mais constante de vidas reduzidas à rotina do trabalho forçado. Joana nascerá ali mesmo, entre o cheiro de café e a rotina do serviço. e neta de pessoas trazidas da África, cresceu-se em outro mundo que não aquele, o da casa grande, do toque dos senhores, do trabalho que começava antes do sol e só terminava bem depois do pôr.
Suas mãos aprenderam cedo a limpar, preparar alimentos, cuidar do ambiente doméstico. Aprendera também a contar pequenas alegrias em silêncio, a esconder cuidado e afeto onde convinha. a triangular a prudência com a ternura para sobreviver. A vida lhe ofereceu por um breve tempo algo que parecia iluminar todas as sombras, o amor de Tomás.
Carpinteiro de gesto firme e maneiras calmas, Thomás trazia consigo uma promessa rara naquelas terras, uma esperança articulada em sonhos práticos, juntar moedas, comprar a própria liberdade, fazer planos. Casaram-se numa cerimônia simples na Capela da Fazenda em 1841, um ritual permitido pelo coronel porque, dizia-se, a família organizada tornava o trabalho mais previsível.
Para Joana, o casamento foi um pequeno refúgio, um porto de afeto em meio à dureza. Em março de 1843, nasceu Gabriel, filho do casal. O bebê trouxe com ele uma luz frágil, mas real. olhos do pai, pele pequena e o choro que para Joana era mais que som. Era a prova viva de que algo mais do que opressão ainda existia.
Os meses que se seguiram misturaram cansaço e felicidade. Três dias após o parto, Joana retornou às tarefas. Tomás multiplicou esforços para guardar qualquer moeda que permitisse imaginar um futuro diferente. O amor pelo menino fez da rotina um pouco menos cruel. Mas a vida naquela fazenda não dava tréquas, e a presença do coronel era um lembrete constante de ordem imposta por medo.
Naquela noite de agosto, o que começou como mais um episódio de pranto noturno, tomou um rumo que ninguém ali esqueceria. Gabriel sofria de cólicas, um choro de bebê que nenhum remédio caseiro parecia aplacar, e o som atravessou a noite quente até chegar na casa grande. O coronel, que não tolerava ruídos que perturbassem sua ordem ou sua vaidade, levantou-se irritado.
Sua fama de punir severamente qualquer desvio da disciplina fazia cada presença sua no terreiro irradiar a ameaça. Quando ele entrou na cinzala, o ar ficou mais denso. Olhares se baixaram, corpos encolheram. Joana levantou-se num gesto automático, apertando Gabriel junto ao peito, pedindo clemência com a voz afogada.
A evigência do coronel foi rápida e impiedosa, que o choro cessasse. Joana tentou acalmar o filho, embalando-o, sussurrando canções que só os velhos sabiam. A noite arrastou-se, o pranto persistiu e aquilo que poderia ser uma repreensão se transformou numa sentença pública. O feitor acendeu a fogueira do terreiro e o coronel decidiu fazer do sofrimento do bebê um exemplo.
Joana não teve poder de oposição. Quando o filho foi arrancado dos seus braços e lançado às chamas, o mundo que ela conhecia condensou-se num único grito, um som que rasgou à noite e permaneceu gravado na carne de cada testemunha. O fogo fez do pequeno corpo de Gabriel a imagem mais cruel daquele sistema.
Em poucos segundos, a vida se extinguiu e o grito de Joana virou algo que não cabia em palavras fáceis. Os outros escravos, presos entre o medo e a compaixão, só puderam assistir. Aquele ato não foi apenas barbári contra um bebê, foi a confirmação irrefutável de que ali poder e impunidade se sustentavam numa violência que suprimia até o direito de chorar.
Quando o coronel voltou para a casa grande, limpou as mãos como se a noite fosse apenas rotina. O terreiro ficou com um silêncio pesado, quebrado apenas pelo soluço contido de quem precisava fingir normalidade para sobreviver. Joana saiu daquela noite como mulher dividida, física e espiritualmente marcada, com uma promessa que se alojou fundo, um juramento nascido da perda absoluta.
Ela jurou vingança. Essa promessa tornou-se dali em diante o eixo de sua existência, não como ato imediato, não como um plano concreto, mas como um mantra que a manteve respirando nas manhãs de trabalho, nas refeições tomadas em silêncio, nos dias em que o próprio corpo pedia que se desfizesse do peso do luto.
O juramento de Joana não foi uma explosão, foi um movimento lento, uma chama de raiva que ela regou noite após noite. dor tornou-se vigilância. Ela observava o coronel com a atenção que antes lhe era exigida para não errar. Memorizou rotinas, horários, fricções humanas. Aprendeu quando ele ficava só e quando estava cercado.
Transformou os detalhes do cotidiano alheio em inventário de possibilidades. Era uma preparação feita no vazio, sem ferramentas, sem aliados seguros, mas com a determinação que nascia do desespero. Entretanto, o sistema que ela enfrentava era desenhado para esmagar qualquer tentativa de ruptura. A estrutura social e legal protegia os senhores.
Os capitães do engenho e os fazendeiros tinham redes de poder que se estendiam para além dos limites das terras. A vulnerabilidade dos escravos era intensificada por medo e vigilância. Delatar alguém significava risco de morte. Nesse contexto, a vingança pessoal era uma ideia que se chocava contra a realidade de quem não tinha recurso, posse ou respaldo.
Ainda assim, a promessa continuou sendo a única coisa que mantinha Joana viva por muitos anos. Quando Tomás adoeceu e morreu, aquele fio de esperança que restara também se rompeu. A perda do marido e do filho em anos próximos deixou Joana submersa numa solidão que não se traduzia em lágrimas fáceis, era prostação interior.
Ela ficara, porém, com o juramento, um peso que a definia mais que a própria identidade de serva. Agora ela era a mulher que prometera justiça ao bebê queimado. As noites viraram recordações agudas. O choro que ela ouvia era frequentemente uma lembrança que a arrancava do sono. Ao longo das décadas, a aparência do coronel mudou.
Ficou mais lento, mais frágil, mas a proteção social que o aguardava não diminuiu. Ele sofreu acidentes, quebras e doenças. E em certa ocasião, Joan achou ter a chance que desejava. Houve uma noite de fragilidade e exposição. Um braço quebrado o deixara vulnerável por semanas. Joana sentiu pela primeira vez em muitos anos a realidade da possibilidade.
Aproximou-se do quarto enquanto a casa grande dormia, mas quando chegou à soleira da porta, seu corpo tremeu. O medo antigo, o condicionamento do terror apreendido no cotidiano, impediu a ação. Ela permanecera ali imóvel e voltou ao seu canto sem nada ter feito. O fracasso a consumiu por dentro.
Promessas, por mais fortes que sejam, não tornam simples o gesto que exige tirar uma vida. A passagem do tempo amassou ainda mais a determinação de Joana, mas também a tornou menos ardente em aparência. As pessoas que trabalhavam com ela passaram a descrevê-la como alguém que parecia andar com o espectro viva, contudo, com o brilho desaparecido.
O juramento seguia sendo repetido, sussurrado, uma oração de ódio que a impelia a não ceder à resignação completa. Mas com o tempo, o que antes alimentava a sua resistência transformou-se em fardo difícil de sustentar. Ocorre que em sistemas de dominação, a possibilidade de reparação individual quase nunca se concretiza.
As estruturas sociais e a própria vida aproveitam para seguir em frente. A história da vida de Joana, a partir de então, foi feita de pequenas batalhas internas. Em 1854, novamente pensou que havia encontrado uma brecha quando o coronel ficou mais fragilizado. Em outra ocasião, planejou métodos que pareciam factíveis apenas na imaginação, venenos, acidentes encenados, armadilhas.
Mas a realidade de quem vive sobre vigilância é diferente da abstração do desejo. Cozinhas e aproximações não eram fáceis. Os pratos passavam por diversas mãos e qualquer movimento estranho podia significar tortura. E mais que isso, Joana carregava outra vítima em sua memória. A lembrança do plantão contínuo, do corpo agarrado pelo feitor, da humilhação que o próprio sistema infligira.
Essas memórias a paralisavam mais que um medo de morrer. Os anos passaram entre anos de trabalho taciturno e dias em que o passado fazia companhia ao presente. O coronel envelheceu, teve filhos que cresceram, recebeu festas e homenagens. Nas cerimônias em que seu nome era ovacionado, Joana via como a história oficial podia ser construída de modo oposto à dor que ela vivia.
Homenagens eram erigas enquanto os rostos daqueles que sofreram ficavam nas sombras. Quando o coronel morreu em 1885, cercado de conforto e com um sepultamento digno, Joana estava ali de longe, assistindo o cortejo. As lágrimas que saíram não foram de triunfo, foram reconhecimento tardio de que a promessa que a manteve por tanto tempo não se cumprira.
A morte do coronel não trouxe alívio para Joana. Ao contrário, a sensação de fracasso fez-se mais pesada, porque a justiça que ela queria vinha por meios próprios e pessoais. E, no fim, a história havia dado-lhe apenas um fim natural. A vingança, concebida por dor e transformada em promessa, evaporou diante do curso das coisas.
Joana viveu cada ano posterior com o gosto amargo da possibilidade que não se concretizara. A liberdade legal chegou em 1888 com a abolição. Dois anos depois, ela era uma mulher livre no papel, mas sem meios, sem família, sem lugar diferente daquele onde nascera. A liberdade formal não redimia o que o sistema havia consumido.
Para Joana, os primeiros anos após a assinatura da lei foram vazios de mudanças essenciais, continuações de rotina, pequenos trabalhos, dias em que a lembrança do filho queimado era seu único e fiel companheiro. Quando morreu em janeiro de 1890, foi sozinha, enterrada sem nome, sem cerimônia que reconhecesse a intensidade de sua história.
O fim de sua vida foi simples e, de certo modo, invisível para as placas e narrativas que honravam proprietários e senhores. O contraste era brutal. Um homem que deixara rastros em ruas e documentos, um corpo desigual de memórias que só eram lembradas por vozes descuidadas. Contudo, a história de Joana não desapareceu.
Entre aqueles que continuaram a viver e trabalhar na região, a lembrança da mulher que perdeu o filho de forma tão bárbara persistiu. Histórias sussurradas, relatos transmitidos de uma geração a outra fizeram com que a memória de Gabriel e da mãe não se diluísse completamente. Não havia monumentos, mas havia vozes, elementos que, em sua forma fragmentária, construíram outra história possível, a de quem sofreu e de quem não teve a justiça que tanto desejou.
Refletir sobre essa narrativa ampla é entender que a escravidão não foi apenas força de trabalho. Foi um projeto que devastou corações, constituiu rotinas de violência e legitimou impunidade. A vingança que Joana desejou era, ao seu modo, uma recusa à amnésia, mas a falha em cumpri-la também aponta a magnitude do que era enfrentar um sistema que esmagava não só corpos, mas intenções.
A história que conta o coronel em termos de legado magistral é muitas vezes a mesma que guilhotina a presença das vítimas. Recuperar a voz de Joana significa, portanto, questionar quais narrativas se tornam públicas e quais permanecem enterradas. A memória coletiva que outrora manteve a história viva entre os descendentes dos escravos da fazenda Santa Rita é uma forma de resistência que não depende do êxito da vingança.
A lembrança do que aconteceu naquela noite, dos nomes esquecidos, dos juramentos que não se cumpriram, é uma forma de impedir que a brutalidade se transforme em simples capítulo de respeito público. Contar, Joana, é não só reviver a dor, mas também afirmar que a história não cabe apenas em placas e registros oficiais. Ela vive na transmissão oral, nas marcas que carregam as famílias, nas cicatrizes que estão presentes, mesmo quando a justiça formal falta.
A lição que sobra é dupla. Por um lado, há a constatação cruel de que nem sempre a justiça nos alcança quando esperamos e que sistemas de dominação conseguem se safar por décadas ou séculos. Por outro, existe a beleza resistente de que ao relato da dor, passado adiante, corrói a narrativa de benignidade que tenta enfeitar o passado.
A memória de Joana, de Gabriel, de Tomás e de tantos outros é a prova de que contar é uma forma de reparação, nem sempre completa, mas necessária. Ao final, a vingança que nunca aconteceu transforma-se numa outra espécie de vingança, a que se faz contra o esquecimento. Cada vez que a história é narrada, a injustiça é exposta. Cada vez que se menciona o nome de Gabriel, o gesto do coronel é confrontado com a lembrança humana.
em vez de redenção, a preservação. Em vez de coroação, a lembrança. E essa lembrança passada de geração em geração, funciona como uma forma parcial de justiça. Não aquela que cumpriria o juramento, mas aquela que mantém a verdade viva e assim retira alguma autoridade das versões que quiseram pintar os tempos passados como brandos.
M.