A Tensão Crescente no Coração da Democracia
A cena política brasileira tem sido palco de tensões que não apenas polarizam o debate público, mas também expõem as profundas contradições entre a agenda legislativa e as reais prioridades da nação. Recentemente, a Câmara dos Deputados se transformou no epicentro de um confronto que culminou na entrada de manifestantes, em um protesto contundente, dirigindo-se ao deputado Hugo Motta. Este ato de mobilização popular veio na esteira de episódios controversos que envolveram o tratamento dispensado a parlamentares de oposição, como o deputado Glauber Braga, e a representantes da imprensa. A mensagem dos cidadãos era clara: um repúdio veemente a posturas consideradas autoritárias e uma exigência por transparência e responsabilidade no trato dos assuntos públicos.
O cerne da indignação popular, no entanto, extrapola a conduta de um único parlamentar e se concentra na tramitação de uma proposta legislativa extremamente sensível: o Projeto de Lei (PL) da Dosimetria ou, como tem sido genericamente referido pela oposição, o “PL da clemência”. A proposta, segundo os manifestantes e setores críticos, visa alterar critérios legais que poderiam resultar na redução de penas para indivíduos condenados por crimes graves, incluindo aqueles ligados a movimentos antidemocráticos. A preocupação central é que tal medida sirva como uma forma de anistia disfarçada, beneficiando figuras políticas de alta projeção, como o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros envolvidos em ataques ao Estado Democrático de Direito.
A Falácia das Prioridades Nacionais
A discussão sobre este PL ganhou contornos dramáticos quando o relator da matéria, o deputado Paulinho da Força, declarou em entrevista a um veículo de comunicação que a aprovação da medida era, pasmem, uma “prioridade do Brasil”. Essa afirmação chocou amplos setores da sociedade e da opinião pública, gerando um imediato questionamento sobre o alinhamento do Congresso Nacional com as necessidades cotidianas e urgentes do povo brasileiro.
É compreensível que um cidadão comum, que se levanta às 5 horas da manhã para enfrentar o transporte público e garantir o sustento de sua família, não veja na redução de pena de condenados por crimes contra a democracia uma questão de “prioridade nacional”. O brasileiro vive uma realidade marcada por desafios estruturais que clamam por atenção imediata do Legislativo.
O topo da lista de preocupações do povo, inegavelmente, é a Segurança Pública. Seja em São Paulo, Rio de Janeiro ou em qualquer capital ou município do país, a insegurança é uma chaga social que limita a liberdade, ameaça a vida e impede o pleno desenvolvimento econômico. Priorizar o debate sobre a dosimetria de pena para figuras políticas, enquanto a população é diariamente refém da violência, é percebido como um escárnio.
Mas as prioridades populares vão muito além. O movimento social e sindical, por exemplo, tem lutado incansavelmente pelo fim da escala de trabalho 6×1, uma jornada exaustiva que retira do trabalhador o direito ao descanso digno e ao convívio familiar. Outro ponto crucial na agenda social é a elaboração e aprovação de projetos robustos voltados para a proteção de crianças, adolescentes e, sobretudo, mulheres que são vítimas de feminicídio. Os casos de violência de gênero têm vindo à tona com frequência alarmante, e o clamor por leis mais severas, mecanismos de proteção eficazes e políticas públicas de prevenção é uma voz que deveria ressoar nos plenários da Câmara e do Senado com muito mais urgência do que qualquer debate sobre clemência política. A essa lista, soma-se o interesse popular em medidas de justiça fiscal, como a taxação de grandes fortunas, para que o custo da crise e do desenvolvimento seja distribuído de maneira mais equânime na sociedade.

A discrepância entre o que o Congresso elege como pauta principal e o que o povo vivencia como urgência estabelece um profundo divórcio entre representantes e representados, minando a confiança nas instituições democráticas.
A Advertência de Alexandre de Moraes: Um Limite Constitucional à Clemnência
Em meio à efervescência política do Congresso, o Poder Judiciário, na figura do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), agiu como um muro de contenção legal, reafirmando os limites constitucionais à clemência para crimes que atentem contra a democracia.
A resposta do Judiciário veio na forma de uma clara advertência sobre a impossibilidade de aplicação do perdão judicial e de outras formas de clemência, como o indulto e a anistia, para crimes dessa natureza. Moraes ressaltou que, conforme a jurisprudência já estabelecida pelo STF, indulto, anistia e perdão judicial são espécies do mesmo gênero jurídico: a clemência constitucional.
A Constituição Federal estabelece as chamadas “cláusulas pétreas”, que são núcleos imutáveis do texto constitucional, essenciais à estrutura do Estado. Os crimes que atacam o Estado Democrático de Direito são vistos pelo Supremo como atentados diretos a essas cláusulas pétreas. A decisão do STF é inequívoca: assim como o presidente da República não pode conceder indulto e o Congresso Nacional não pode aprovar anistia para crimes contra a democracia, o Poder Judiciário também está impedido de aplicar o perdão judicial.
Esta postura do STF é um baluarte jurídico que impede que manobras políticas transformem o sistema de justiça em um instrumento de autoanistia para aqueles que tentaram subverter a ordem institucional. A separação dos Poderes e o respeito à Carta Magna são o que garante a estabilidade democrática, e a intervenção do Judiciário é vista por muitos como uma defesa necessária da integridade constitucional contra avanços legislativos percebidos como oportunistas.
Mobilização Popular: O Contraponto à Agenda do Congresso
A resposta à agenda do Congresso não se limitou ao campo jurídico. A pressão e a mobilização popular têm sido insistentemente apontadas como o único caminho capaz de reverter propostas consideradas prejudiciais ao interesse público, citando como exemplo a atuação na chamada “PEC da Blindagem”.
O chamado é para que a população ocupe as ruas, em um movimento de massas que enfrente o que foi qualificado como o “Congresso inimigo do povo”. A convocação para manifestações tem o objetivo claro de denunciar e lutar contra a anistia para os apoiadores de atos antidemocráticos e, simultaneamente, pressionar pela defesa de mandatos populares, como o do deputado Glauber Braga, e pela aprovação de pautas de interesse social genuíno, como o fim da escala 6×1 e a taxação de grandes fortunas.

A crítica se aprofunda ao contrastar a lentidão e a aparente má vontade do Legislativo em tratar das pautas sociais com a celeridade em discutir a clemência política. Enquanto mulheres marcham pela vida diante do aumento dos feminicídios, o Congresso é acusado de priorizar a discussão sobre perdão para quem atentou contra as instituições.
A Ética Parlamentar em Xeque
O debate sobre a anistia inevitavelmente resvala na questão da ética e da integridade parlamentar. A defesa de figuras como Glauber Braga se baseia em um histórico de conduta ilibada: um parlamentar sem processos por corrupção, sem ligação com escândalos como o orçamento secreto, e sem envolvimento em negociações questionáveis com grupos financeiros ou partidos. Sua luta, conforme é ressaltado por seus defensores, tem sido consistentemente contra a corrupção e o tráfico de influência.
Em um contraste sombrio, a agenda da anistia se choca com a memória de crimes políticos e sociais de grande impacto. O caso do ex-deputado Chiquinho Brazão, acusado de ser o mandante do assassinato da vereadora Marielle Franco, é trazido à tona como um exemplo de como o sistema político, em certas ocasiões, pode proteger seus próprios. O fato de que seu mandato foi cassado por decisão da Mesa, e não pelo Colegiado do Conselho de Ética, com o propósito de preservar seus direitos políticos, é visto como uma distorção perigosa da justiça.
Táticas de Obstrução e a Construção de 2026
A ofensiva política no Congresso revelou táticas de obstrução que paralisaram a Câmara por 48 horas. A extrema-direita usou a obstrução do trabalho legislativo como ferramenta para forçar a votação do PL da clemência e da anistia. Enquanto deputados de esquerda eram duramente repreendidos em plenário, os parlamentares que obstruíam os trabalhos em defesa de condenados e de projetos polêmicos eram, segundo os críticos, tratados de forma diferenciada, evidenciando um tratamento desigual dentro da Casa.
Essa movimentação legislativa não é vista como um evento isolado, mas sim como parte de uma “ofensiva golpista” maior, visando a construção de um cenário eleitoral favorável para 2026. A suposta “covardia” de Jair Bolsonaro, que, após um breve período de restrição, teria cedido à votação da dosimetria para reduzir as penas de seus aliados — e, em um “acordão” de cúpula, para viabilizar a candidatura de Flávio Bolsonaro — é apontada como a evidência de que a agenda de clemência é, no fundo, uma manobra de sobrevivência política.

A votação de pautas cruciais e controversas, como o Marco Temporal e a própria anistia, durante a madrugada, às 3 horas da manhã, é tratada como um ato de “vergonha” e de desrespeito à transparência e ao debate público, reforçando a imagem de um Congresso que atua à margem do escrutínio popular.
Conclusão: O Imperativo da Vigilância
A polarização que atinge o país, com familiares e amigos em conflito, é um sintoma da crise, mas não a sua causa. A verdadeira doença política reside na incapacidade ou na má-fé de parte da classe política em se desvencilhar de agendas de interesse próprio e focar no bem-estar coletivo.
O episódio recente de protestos, a firmeza do STF em impor limites constitucionais à clemência, e o debate acalorado sobre o que é ou não prioridade nacional, servem como um doloroso, mas necessário, lembrete: a democracia brasileira está sob constante vigilância. A mobilização popular e a defesa intransigente das cláusulas pétreas são os únicos antídotos para evitar que o “Congresso inimigo do povo” siga reescrevendo a lei em favor de condenados por atos antidemocráticos. É imperativo que o país vire a página da polarização e do revanchismo e comece, de fato, a discutir e a resolver os problemas que afligem o trabalhador, o cidadão e a família brasileira, desde a segurança pública até a justiça social e a proteção das minorias.