Meu nome é Luzia e durante 12 anos minhas mãos tocaram a cabeça da mulher que mais odiava neste mundo, puxando, desembaraçando e penteando cada fio como se minha própria dignidade estivesse presa naquelas cerdas duras de marfim importado. o ano de 1862 e eu tinha 22 anos quando finalmente encontrei coragem para transformar um pente rotineiro.

No último penteado que Senhá Violeta usaria em sua vida. Nascia escrava na província de Pernambuco, entre os cheiros de cana e marezia, que vinham dos engenhos e das pontes de Recife, filha de Conceição, cozinheira da casa grande de pai desconhecido, provavelmente um dos homens brancos que circulavam pela propriedade do coronel Antônio Pereira da Costa.
Minha mãe morreu quando eu tinha 8 anos, vítima de uma febre que varreu a cenzala, deixando-me órfã num mundo que já era cruel para quem herdava minha cor. Cresci entre Recife e Olinda, numa casa senhorial, perto das ladeiras e igrejas antigas, onde o vento trazia o sino da sé e o cheiro de sal. A fachada exibiu o brasão dos costa, uma águia dourada segurando uma cruz e por trás daquela devoção se escondia a violência que a gente aprendia cedo a calar.
Desde pequena fui designada aos serviços da casa: limpar, organizar, passar e servir. Mas aos 10 anos recebi a tarefa que marcaria meu destino, ser a responsável por pentear e arrumar. Todos os dias os cabelos de Siná Violeta Pereira da Costa, esposa do coronel Violeta tinha 35 anos, beleza de porcelana e crueldade de lâmina.
protegia a pele da luz forte de Pernambuco e guardava seus cabelos loiros em penteados elaborados como coroas de um reino que ela governava com humilhação. O ritual do pente começava sempre às 8 da noite numa sala de tocador com espelho francês e pente de marfim que ela dizia ter vindo da Europa.
Violeta ordenava que eu ficasse atrás dela, em pé, com as costas retas, e que cada puxada fosse firme, perfeita, limpa, como se eu pudesse apagar minha existência a cada passada de cerdas sobre seu couro cabeludo branco. Ela gostava de transformar o simples ato de pentear em tortura. Pedia para eu despir seus grampos um a um, devagar, para aprender a ter mãos de dama.
E ria quando meus dedos tremiam. Se um fio quebrava, me fazia mostrar a palma da mão para levar reguadas leves de disciplina. A mesa derrubava migalhas ao chão de propósito e me obrigava a comer ajoelhada, dizendo às visitas que eu tinha sorte de tocar uma pele fina enquanto lavava meu pecado com o serviço.
No tocador, dizia que minha mão escura sujava o pente claro. Se a escoba caía. Eu tinha de beijar o cabo antes de continuar para pedir perdão à elegância. E enquanto eu desembaraçava, ela sussurrava que escrava sem espírito se comporta melhor e que eu era a melhor boneca de pano que já tivera. Suportei por anos em silêncio.
Não por aceitar, mas porque reação significava açoite público ou coisa pior. Cada noite, porém, enquanto o pente corria, uma raiva fria crescia dentro de mim, fermentando como garapa esquecida no sol. na frente das amigas, me chamava para demonstrar método, derrubava pão no chão e ordenava que eu comesse, explicando que é assim que se educo uma negra para não desperdiçar.
O toucador era seu palco preferido. Mandava que eu testasse a firmeza do pente no meu couro cabeludo até arder para provar que a mão estava certa. E se um penteado ficava perfeito, ela dizia que a perfeição era dela, não minha. Se um fio escapava, a culpa era toda minha, porque no negro até o cabelo é rebeldia.
Naquela noite abafada de 1862, o ar de Recife parecia melado, sem vento do Capibaribe, e o cheiro de jasmim competia com um suor salgado que subia das docas. Depois de me humilhar diante de duas visitas de Olinda, Violeta me chamou ao tocador. Queria um penteado alto com tranças cruzadas e fita creme para aguentar o calor e a inveja.
Sentei-me atrás dela, como sempre e alinhei o pente de marfim entre os dedos. As velas tremiam e a luz fazia brilhar a superfície lisa do cabo, onde o entale de videiras me encarava como serpentes. Ela fechou os olhos e sorriu. Hoje, Luzia, quero firmeza. Puxe sem dó. Nasceu para servir, não para pensar. Naquele instante, o pensamento que me acompanhava há anos se tornou plano.
Não haveria água, não haveria banheira, haveria apenas o pente cabecadela. e meu par de mãos calejadas que aprenderam a força do torcer e do prender. Quando a gente aprende a não tremer, aprende a decidir. Comecei separando mechas, untando os fios com óleo perfumado e passando o pente com a cadência que ela exigia.
Ela relaxou, entregue ao ritual que sempre a deixava sem defesa. Quando prendi a primeira trança, deixei o cabo do pente encostar na região macia atrás da orelha, onde o nervo salta. Violeta abriu um olho desconfiada e voltou a fechar, convencida da própria intocabilidade. Foi quando sussurrei. Obrigada pela educação. Sim. Ela sorriu cega de orgulho.
Então enfiei o pente por baixo da mecha, segurei o cabelo como alça e girei com violência súbita numa torção que puxou couro, raiz e ar. Ela arfou, tentou levantar, mas minha mão esquerda já estava na nuca. Enterrando as unhas, a direita desceu com pente de marfim, como uma lâmina cega, golpe curto na testa, onde a pele é fina.

O estalo não veio do pente, veio dela. O primeiro sangue apareceu como um fio, depois como uma gota que escorreu até a sobrancelha clara. Ela tentou gritar, mas a trança que eu costurar apertada serviu de rédia. Agora quem dá ordem sou eu. Falei baixo e torci de novo. O pente rangeu, o sangue manchou a fita creme.
O espelho francês devolveu o quadro inteiro como um quadro santo, profanado. Violeta se debateu, arranhou meus braços, mas o tocador a aprisionava. Cadeira pesada, costas altas, as mecas já presas, virando laços contra ela. Segurei os punhos com uma mão, com a outra levei o pente à têmpora, pressionando, empurrando, quebrando o dente no osso fino.
Liberdade, ela sibilou, dou alforria, ri da ironia que ela nunca entenderia. Depois de 12 anos puxando seu cabelo, aprendi onde a dor mora. Ela tentou se erguer mais uma vez. Empurrei sua testa contra a borda da mesa, curta, o suficiente para apagar a luta, sem ruído de escândalo. O pente quebrou em dois metade no chão, metade na minha mão, molhada de vermelho.
A fita creme agora era uma serpente rubra caindo sobre o ombro dela. Quando o corpo amoleceu, soltei devagar, como quem termina um coque perfeito. O silêncio que veio depois foi de uma limpeza que nenhum banho trouxe a violeta. Fechei a porta do tocador, lavei as mãos na bacia e guardei a metade intacta do cabo do pente na minha saia.
Na manhã seguinte, Benedito, escravo dos quartos de cima, encontrou a cena. O médico falou em desmaio por calor, queda no tocador, choque. As amigas de Olinda perguntaram porque a fita estava manchada. Responderam que os olhos importados às vezes tingem o coronel. Abatido, disse que Violeta sempre foi firme, não cruel, como se repetir uma mentira pudesse salvá-lo do espelho.
Perguntou se eu fora a última a vê-la. Respondi que a penteei às 8 como sempre e que depois me mandou dormir. Ninguém suspeitou da escrava que nunca tremia. Em poucas semanas, a casa se desfez. O coronel seguiu pro interior. Eu fui vendida com boas referências a uma família do Recife que me tratou com dignidade menos ainda cativa por lei, mas sem a humilhação de comer no chão.
Anos depois, quando a lei Áurea chegou, eu já tinha outra vida, um quarto meu e a cabeça erguida, que voltei a reconhecer no espelho. Às vezes o vento do Atlântico sobe pelas pontes do Recife e traz comigo a memória daquela noite quente de 1862. Nunca sente remorço. Violeta escolheu a crueldade. Eu escolhi a justiça possível as minhas mãos.
Aprendi que justiça nem sempre vem do papel com selo e carimbo. Às vezes vem da firmeza de quem foi treinada a puxar sem pensar. e decide um dia pensar enquanto puxa. Dizem que por anos, hóspedes de uma pensão em Olinda, ouviram um leve arranhar de pente na madeira do tocador, como se alguém ainda treinasse a mão para não tremer.
A lenda correu baixa entre cativos e libertos. A fita creme que ficou vermelha, o pente quebrado como sentença, a boneca de pano que aprendeu a morder. Se estas histórias de resistência silenciosa e vingança meticulosa tocam a alma, a quem conteada vezes demais. Se história como esta tocam a alma, inscreva-se agora e ative o sino para não perder a próxima.