Entre 1887 e 1923, dezassete homens das famílias Mendonça, Silveira e Carvalho morreram na região de Vassouras, Rio de Janeiro. Os registos oficiais atribuem as mortes a febres, acidentes rurais e duelos de honra. Mas os arquivos paroquiais omitiram um detalhe: todas as mortes coincidiram com a presença de uma mulher chamada Esperança.
Em março de 1887, o Coronel Augusto Mendonça comprou-a no último leilão de escravos da província. Pagou 400 mil réis, um preço exorbitante para a época, e testemunhas relataram que ele pareceu enfeitiçado desde o primeiro olhar.
Esta é a história de como a última escrava comprada no Brasil se tornou a vingança que três famílias jamais imaginariam enfrentar.
A Fazenda Santa Clara, um império de café no Vale do Paraíba Fluminense, era o coração da aliança entre os Mendonça, Silveira e Carvalho. O Coronel Augusto Mendonça, viúvo, era um homem de poder, mas que escondia uma solidão profunda.
Esperança chegou a Santa Clara em abril de 1887, com 18 anos. Diferente das outras escravas, ela não foi destinada à lavoura; o Coronel determinou que servisse exclusivamente na Casa Grande, auxiliando nos cuidados médicos da família e dos escravos. Uma decisão que gerou comentários maliciosos nos salões de Vassouras.
As cartas preservadas da época revelam o fascínio e o medo que ela despertava. Dona Francisca Silveira, vizinha, escreveu à cunhada:
Augusto anda transtornado desde que trouxe aquela criatura para casa. Diz que ela prepara remédios milagrosos, mas eu vejo malícia em cada gesto dela.
O Padre Antônio Silva, pároco local, registou no seu diário que o Coronel Mendonça falava em confissão sobre “sonhos estranhos, de vozes que o chamam durante a madrugada, de uma presença feminina que o atormenta e seduz simultaneamente.”
O que ninguém sabia era a verdade sobre Esperança. O seu nome original era Oiá, um nome de orixá associado aos ventos e espíritos dos mortos. Nascida em Minas Gerais, filha de uma escrava nagô com um senhor português, ela dominava conhecimentos que combinavam medicina popular africana com práticas rituais aprendidas em terreiros clandestinos. O seu propósito era um mandato ancestral.
Uma carta sua, encontrada décadas depois, escrita em iorubá e português, dizia:
Filha de Oiá, nascida para vingar os filhos roubados de Iemanjá. O sangue derramado nos navios negreiros clama por justiça. Cada chicotada, cada estupro, cada criança vendida será cobrado com juros de três gerações.
Esperança chegou àquele sistema fechado como um elemento disruptivo, com o objetivo de destruir as três famílias que controlavam a economia local. A sua estratégia era metódica: Mendonça (orgulho), Silveira (ganância), Carvalho (luxúria). Cada família tinha uma fraqueza específica a ser explorada até à destruição total.

O primeiro alvo foi Antônio Mendonça, o filho mais velho e herdeiro natural da Santa Clara. Em junho de 1887, ele cancelou abruptamente o noivado e começou a apresentar um comportamento melancólico e obsessivo. Confessou ao Padre Antônio:
Não consigo tirar Esperança dos pensamentos. Ela aparece em meus sonhos todas as noites, sempre nua, sempre me chamando para lugares que não reconheço.
O irmão, Carlos Mendonça, sucumbiu à mesma obsessão. As correspondências revelam que os irmãos disputavam a atenção de Esperança com uma intensidade destrutiva.
Há algo ancestral nela que desperta instintos que eu não sabia possuir.
Esperança manipulava os homens simultaneamente, oferecendo a cada um o que o seu coração mais desesperava: ao Coronel, companhia e prosperidade; a Antônio, modernização e poder; a Carlos, amor eterno e proteção.
O outono de 1887 trouxe as primeiras mortes. Antônio Mendonça foi encontrado no rio Paraíba do Sul, num “afogamento acidental” em outubro. O laudo médico mencionou traumatismo craniano. Um médico particular, porém, notou sob as unhas de Antônio “substâncias vegetais que não consegui identificar, possivelmente extratos de plantas usadas em rituais africanos.”
Três meses depois, em dezembro de 1887, Carlos Mendonça morreu subitamente após o jantar na Casa Grande, de “congestão digestiva severa”. O Padre Antônio registou em confissão selada que Carlos lhe confidenciara que Esperança lhe oferecia regularmente “chás especiais para aumentar sua virilidade e coragem”, com sabores amargos que o faziam sentir-se poderoso durante o dia e atormentado durante a noite.
Com a morte dos dois filhos em menos de seis meses, o Coronel Mendonça entrou num estado de luto profundo que se transformou rapidamente em dependência emocional total de Esperança. Ela assumiu gradualmente o papel de administradora informal da propriedade.
A Lei Áurea, promulgada em maio de 1888, deveria tê-la libertado, mas Esperança permaneceu na Santa Clara como agregada livre, recebendo um salário equivalente ao de um feitor experiente. O Coronel Mendonça havia perdido completamente o juízo. Ela usava o anel de casamento da falecida Dona Amélia e dava ordens aos trabalhadores com autoridade de senhora.
O Dr. Sebastião Moreira, médico da família, documentou os sintomas: insónia crónica, perda de apetite, delírios onde o Coronel falava em línguas desconhecidas e descrevia rituais que jamais presenciara. A sua mente estava sendo manipulada com “chás que alteravam sua perceção da realidade”.
Em setembro de 1888, o Coronel Augusto Mendonça foi encontrado morto em sua cama. O atestado de óbito mencionou “parada cardíaca natural decorrente de desgosto prolongado”, mas correspondências familiares sugeriram um envenenamento lento e deliberado.

Com a morte do Coronel, Esperança recebeu o usufruto vitalício de metade da Casa Grande e uma pensão mensal. A Santa Clara entrou em declínio acelerado.
Joaquim Silveira, proprietário da Fazenda São Bento e antigo parceiro comercial dos Mendonça, tentou comprar a Santa Clara por um preço simbólico. Durante as negociações, ele também sucumbiu ao fascínio. Dona Francisca, sua esposa, anotou no diário:
Joaquim anda completamente transtornado. Retorna para casa com olhar distante, como se tivesse bebido além da conta ou fumado ópio. Temo que ela esteja fazendo com ele exatamente o mesmo que fez com os Mendonça.
Em abril de 1889, Joaquim Silveira morreu em circunstâncias idênticas às do Coronel Mendonça, durante o sono. O Dr. Sebastião recusou-se a assinar o atestado de óbito.
O filho de Joaquim, Pedro Silveira, formado em Direito, assumiu a fazenda, mas a sua aproximação com Esperança repetiu o padrão: em maio de 1889, ele escreveu a um amigo:
Há algo em Esperança que transcende completamente a beleza física. Ela compreende assuntos que nenhuma mulher deveria dominar: política, economia, questões jurídicas complexas.
Ele sucumbiu. Pedro Silveira morreu em agosto de 1889. Manuel Carvalho, patriarca da terceira família, tentou intervir, mas também morreu em setembro, vítima de “envenenamento alimentar severo” após jantar na Santa Clara.
Com essas mortes, as três famílias que controlavam a economia local perderam os seus patriarcas e herdeiros principais em menos de dois anos.
A história oficial em Vassouras encerrou-se abruptamente em 1889, mas arquivos privados revelaram que a influência de Esperança continuou por mais de três décadas. Entre 1890 e 1920, filhos e netos das famílias Silveira e Carvalho morreram em circunstâncias similares às dos patriarcas, sempre precedidas por envolvimentos amorosos intensos com mulheres pardas de identidade incerta, e sempre seguidas por transferências de propriedades para viúvas que desapareciam após a conclusão dos inventários.
Esperança utilizou múltiplas identidades (Esperança dos Santos, Rosa Silva, etc.) e criou uma rede organizada de colaboradoras — ex-escravas, filhas de relacionamentos forçados — treinadas em suas técnicas de sedução, envenenamento e manipulação legal para vingar-se de antigos senhores.
O seu caderno manuscrito, encontrado em 1943, continha receitas detalhadas de venenos vegetais, rituais complexos para invocar espíritos vingativos e uma anotação particularmente chocante:
43 homens, três famílias, 16 propriedades, uma dívida quitada com sangue e terra. Os filhos de Ogum pagaram o preço pelos filhos de Iemanjá, que morreram nos navios negreiros.
A sua estratégia de longo prazo era clara: não basta eliminar os senhores. É preciso transferir suas riquezas para os filhos dos escravos.
O último registo oficial data de 1923. A escritura de venda da antiga Fazenda Santa Clara revela a transferência para Esperança Santos Silva, que declarou uma idade que seria matematicamente impossível, mas que pagou integralmente em ouro.
A vingança histórica da escravidão nunca foi paga oficialmente pelo Estado brasileiro, mas Esperança cobrou-a através de uma guerra espiritual e social, provando que o amor e a dignidade, quando roubados, geram uma força de retribuição que o tempo não pode apagar. Ela desapareceu em 1923, deixando para trás um império de terras e a certeza de que a dívida de sangue havia sido quitada.