O céu estava limpo, de um azul profundo, como se quisesse convencer o coração de que dias melhores estavam por vir. Mas para Arturo e Beatriz, aquele domingo tinha uma cor cinza, como o peso de um ano inteiro sem luz.
Exatamente um ano atrás, Arturo perdeu Estela, sua esposa e mãe de Beatriz, em um acidente de carro. Ambas estavam no carro naquela manhã. Beatriz sobreviveu com apenas alguns arranhões, mas algo dentro dela morreu junto com a mãe. Desde aquele dia, a menina não pronunciou mais uma palavra.
Arturo tentou de tudo. Contratou os melhores médicos, fonoaudiólogos, neurologistas e psicólogos infantis. Todos diziam a mesma coisa: Ela pode falar, mas não quer.
Essas palavras o perseguiam todas as noites, como um castigo. Cada domingo, Arturo tentava reviver a rotina de antes da tragédia, levando Beatriz à praça. Ele vestia um terno simples, mas elegante, sua postura ainda era a de um homem que um dia teve o mundo em suas mãos e agora estava perdendo tudo o que importava.
Beatriz, com um vestido branco e os olhos vazios, caminhava ao lado do pai, segurando com força a sua mão.
— Você quer de morango ou de chocolate? — Arturo perguntou, tentando provocar alguma reação, mas ela ficou imóvel, com o olhar distante, o rosto sem expressão.
Arturo suspirou, sentindo o peso de um silêncio que nem todo o dinheiro do mundo poderia trazer de volta. Foi então que um som cortou o ar. Uma voz doce, infantil, carregada de emoção. Ela vinha do outro lado da praça.
Beatriz levantou os olhos, como se acordasse de um transe. A poucos metros dali, uma menina morena, com roupas simples, cantava em um microfone velho conectado a uma pequena caixa de som. Sua voz tremia, mas tinha alma. Catalina, murmuravam os curiosos. Ela cantava por moedas, mas parecia cantar por algo maior, por algo que fosse vida. Beatriz soltou a mão de Arturo e deu alguns passos.
— Beatriz, onde você vai? — Arturo chamou, assustado ao vê-la se afastar.
Catalina notou sua aproximação e parou de cantar.
— Oi — disse Catalina com um sorriso sereno, sem medo algum.
— Quer cantar comigo?
Beatriz olhou para o chão e negou com a cabeça.
Catalina franziu a testa, mas não insistiu.
— Tudo bem, às vezes não precisamos falar para sermos ouvidos.
Beatriz levantou os olhos, curiosa. Catalina continuou:
— Sabe, quando dói muito aqui dentro — ela colocou a mão sobre o peito — a música ajuda a tirar tudo isso de dentro.
Beatriz engoliu em seco. Um flash de memória atravessou sua mente: o último momento com a mãe no carro, o brinquedo caindo no chão, o grito, o som do impacto. As lágrimas começaram a cair sem aviso.
Catalina, ao ver as lágrimas, estendeu a mão com delicadeza e segurou a dela.
— Canta comigo. Não precisa saber a letra, só deixe sair o que está preso.
Beatriz hesitou, respirou fundo e, pela primeira vez em 12 meses, abriu a boca. Uma nota tremida, quase um sussurro, escapou. Depois, outra. E, como um milagre, a melodia começou a surgir. Era a canção que sua mãe costumava cantar para ela dormir.
Arturo ficou paralisado. Por um momento, pensou que estava alucinando.
— Não, não pode ser… — murmurou, com os olhos cheios de lágrimas. Então ele ouviu novamente. A voz de Beatriz, pura, viva, saindo de dentro dela como um grito de libertação. Ele deixou cair tudo — o sorvete, a compostura, o orgulho — e correu até elas.
— Meu Deus, minha filha! — exclamou, se ajoelhando.
Ele a abraçou com força, chorando como uma criança. Beatriz soluçava, seu som misturando dor e alívio. Catalina deu um passo atrás, sorrindo com ternura, as mãos tremendo enquanto ainda segurava o microfone.
Arturo olhou para ela, com uma mistura de gratidão e incredulidade.
— O que você fez? — sua voz estava cortada pelas lágrimas.
Catalina sorriu timidamente.
— Nada demais, senhor. Às vezes só precisamos de alguém para cantar primeiro, para lembrar ao coração como se fala.
Arturo ficou em silêncio, as lágrimas caindo sem parar. Ele entendia, naquele momento, que o milagre que procurava em médicos e terapias estava ali, em uma menina de rua que, mesmo sem nada, deu tudo o que tinha.
O sol começava a se pôr quando Arturo, ainda atordoado pelo milagre, se aproximou de Catalina no parque. Ela guardava o microfone velho em uma bolsa rasgada quando sentiu a sombra dele no chão.
— Foi você quem fez minha filha falar? — perguntou ele, com a voz ainda trêmula.
Catalina sorriu, baixando os olhos.
— Só cantei, senhor.
Arturo, sem poder conter a emoção, estendeu a mão.
— Aceita um jantar conosco, por favor? Quero agradecer. Quero que conheça melhor a menina que trouxe a voz de minha filha de volta.
Ela hesitou por um instante, mas, diante da expressão sincera dele e o olhar doce de Beatriz, assentiu.
A mansão de Arturo parecia uma fotografia de outro tempo, grande, silenciosa, cheia de ecos de lembranças. Mas naquela noite, algo mudaria. Todas as luzes estavam acesas, a cozinha estava cheia de vida, e o riso de Beatriz cortava o ar, como um sinal de renascimento.
Catalina, impressionada com o tamanho da casa, parou na escada e sussurrou:
— É linda.
Arturo sorriu, com uma tristeza suave.
— Era a casa da minha esposa. Hoje é tudo o que resta dela e talvez também o que resta de nós.
Na mesa, o jantar foi preparado com cuidado, pratos refinados, velas acesas, aromas reconfortantes. Arturo observava as duas meninas rindo, compartilhando histórias, até cantando juntas a canção que uniu seus destinos.
— Nunca imaginei ouvir essa voz novamente — ele confessou, com lágrimas nos olhos.
— Obrigado, Catalina. Você não tem ideia do que fez.
Catalina sorriu, humilde.
— Às vezes, só faz falta alguém cantar primeiro para lembrar o outro como se faz.
Beatriz soltou uma risada leve, como se nunca tivesse carregado tanto peso. Arturo, ao ver essa cena, sentiu seu peito se expandir. A vida, que ele acreditava perdida, parecia finalmente devolver-lhe o ar.
Durante o jantar, Beatriz falou como quem queria compensar um ano inteiro de silêncio. Ela contou histórias de sua mãe, da escola, sonhos interrompidos.
— Mamãe adorava quando comíamos juntos.
Arturo acariciou seu cabelo.
— Ela estaria tão feliz de te ouvir, filha.
Catalina observava tudo comovida. Cada gesto, cada olhar de ternura parecia costurar os pedaços de uma família partida. Pela primeira vez em muito tempo, o som que preenchia a casa era o som da vida e não o do luto.
No entanto, no meio daquela leveza, o olhar de Beatriz começou a mudar. O riso foi desaparecendo. O garfo ficou suspenso no ar e o silêncio voltou. Um silêncio denso e pesado. Arturo notou imediatamente.
— O que houve, filha? Está se sentindo mal?
Ela baixou os olhos, sua voz tremendo.
— Papá, preciso te contar algo sobre o dia do acidente.
Catalina olhou atentamente, o rosto preocupado.
Beatriz respirou fundo e, entre soluços, começou a falar sobre o que havia acontecido no dia da tragédia. Ela explicou como insistira para que sua mãe a levasse ao cinema, como puxou o braço da mãe no carro, e como um simples segundo fez tudo mudar.
Arturo ficou imóvel, o coração batendo descontrolado.
— O que você está dizendo? — sua voz era um sussurro rouco, incrédulo.
Beatriz, com os olhos cheios de dor, pediu perdão.
— Foi minha culpa, papá. Se eu não tivesse insistido…
A raiva, a dor, e a culpa explodiram em Arturo. Ele se levantou, seu corpo tremendo de raiva e desespero.
— Você está dizendo que foi sua culpa que ela morreu? — gritou, as palavras ecoando na sala.
Catalina tentou intervir, mas Arturo não a ouviu. O silêncio voltou, mais pesado que antes.
