A terça-feira em Brasília foi marcada por uma intensa e frenética articulação política que rapidamente transformou a euforia em pânico nos círculos da extrema-direita. O dia, que amanheceu com a promessa de uma grande vitória legislativa, terminou com uma série de reviravoltas que não apenas frustraram as esperanças de anistia total, mas também introduziram um elemento de caos e instabilidade, culminando no anúncio do processo de cassação de um dos filhos do ex-presidente. Os bastidores do Congresso Nacional revelaram uma complexa teia de alianças, ameaças e movimentos estratégicos que expuseram a fragilidade da base aliada e a profundidade da crise política e judicial que cerca o grupo.
O Eixo Político-Investigativo e a Ameaça Oculta
O dia de intensas negociações começou com um encontro crucial entre Flávio Bolsonaro e o ex-presidente, que se encontra sob medidas restritivas de liberdade. Logo em seguida, Flávio se reuniu com figuras políticas de peso, notadamente Ciro Nogueira e Luciano Bivar, presidente do União Brasil. A presença desses dois nomes adicionou uma camada de complexidade e controvérsia, visto que ambos são figuras investigadas por supostas ligações com facções criminosas e esquemas de lavagem de dinheiro, de acordo com inquéritos da Polícia Federal. Essa convergência de interesses entre o clã e políticos com histórico de investigações serve como pano de fundo para as negociações que se seguiram.
O tema central desses encontros, especula-se, foi a ameaça de um racha interno e a necessidade de coesão diante das próximas eleições presidenciais. A ala bolsonarista, ao que tudo indica, utilizou seu maior trunfo: o poder de descredibilização nas redes sociais, o chamado “Gabinete do Ódio”. A mensagem transmitida aos aliados da direita, frequentemente agrupados sob o termo “Centrão”, foi clara e intimidadora. Flávio teria alertado que qualquer candidato que se apresentasse como uma “terceira via” ou uma alternativa de centro-direita ao bolsonarismo seria implacavelmente atacado e desmantelado nas redes.

Cogitou-se o lançamento de nomes como o do governador Ratinho Júnior para a presidência, com a crença de que ele poderia avançar para o segundo turno com o apoio do ex-presidente. No entanto, a ameaça de ataques digitais — de “estraçalhar” a reputação nas redes sociais — fez com que os potenciais aliados recuassem. O caso de Tarcísio de Freitas serviu como um exemplo prático do poder destrutivo dessas milícias digitais. Quando Eduardo Bolsonaro, mesmo com seu limitado alcance individual, direcionou críticas a Tarcísio, o governador de São Paulo perdeu três pontos nas pesquisas. Em um cenário eleitoral polarizado, onde uma diferença mínima (como os 1,8% que separaram o atual presidente da vitória no primeiro turno da última eleição) pode ser decisiva, três pontos é um dano estratégico insuperável. O medo de se tornar o “alvo direto” dessa máquina de ódio coagiu os grupos a reconsiderarem qualquer aliança ou candidatura dissidente.
A Troca de Cavalos: Anistia Derrotada pela Dosimetria
Em meio a essa pressão interna, o deputado Hugo Motta, um dos articuladores da base aliada na Câmara, anunciou o projeto que levaria o nome da anistia à votação. A reação da sociedade e da oposição foi imediata e avassaladora. Em poucas horas, as hashtags “Sem Anistia” e “Sem Dosimetria” dominaram as redes sociais, refletindo o sentimento majoritário da população. Uma pesquisa revelou que mais de 50% dos brasileiros (53%, para ser exato) eram a favor da manutenção das restrições de liberdade do ex-presidente.
A pressão popular, somada à resistência da esquerda e à complexidade das negociações, forçou um recuo estratégico. Hugo Motta, inicialmente porta-voz da anistia total, deu uma entrevista na qual enterrou essa possibilidade. A pauta seria trocada: em vez da anistia, que perdoaria os crimes, seria votado o Projeto de Lei da Dosimetria. Este foi o primeiro balde de água fria nos apoiadores, pois a dosimetria, ao contrário da anistia, não garantiria a liberdade imediata.
Curiosamente, nesse mesmo anúncio, Hugo Motta entregou a segunda grande bomba da noite.
A Cassação de Eduardo Bolsonaro: Uma Manobra de Artur Lira
Na mesma reunião de líderes que selou o destino do projeto de anistia, Motta anunciou que o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) seria alvo de um processo de cassação de seu mandato parlamentar. O motivo: acúmulo de faltas suficientes para a perda do cargo.
Eduardo Bolsonaro se encontrava no exterior por decisão própria, nos Estados Unidos, e não estava frequentando as sessões da Câmara. O regimento interno é claro: o exercício do mandato exige a presença física no território nacional e um limite de ausências. O deputado já havia atingido esse limite.
O anúncio pegou a extrema-direita de surpresa. O prazo estipulado é de cinco sessões para que o deputado apresente sua defesa. Motta indicou que o processo seria concluído rapidamente, talvez na semana seguinte, dada a contagem das faltas. Essa medida é vista por analistas como uma jogada de poder do presidente da Câmara, Artur Lira, que utilizaria o processo de cassação como uma moeda de troca ou um instrumento de “equalização” política. A ideia seria cassar figuras controversas da extrema-direita (como Eduardo Bolsonaro e Carla Zambelli) ao mesmo tempo em que se processa desafetos internos (como Glauber Braga, da oposição), criando um falso senso de imparcialidade, mesmo que os crimes e as acusações sejam de naturezas completamente distintas. Para o clã bolsonarista, a cassação de um de seus membros, mesmo por “falta”, é uma derrota emblemática, mas que não se compara ao objetivo maior: garantir a liberdade do ex-presidente.
O Texto Final e o Pesadelo Jurídico
O clímax da tensão veio com a apresentação do texto final do projeto de dosimetria, de autoria do deputado Paulinho da Força. A proposta visa equiparar os crimes de Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito e Golpe de Estado, estabelecendo que o condenado cumprirá a pena referente ao crime que tiver a maior sanção. A intenção, por trás da aparente tecnicidade, era reduzir o tempo de reclusão.
Contudo, a análise do texto final trouxe a mais dura das realidades. Mesmo com a dosimetria, a pena do ex-presidente ainda se manteria na casa de dezenove anos de reclusão. O tempo em regime fechado, a ser cumprido antes da progressão, ficaria em torno de dois anos e nove meses. O projeto, portanto, falhou em seu principal objetivo: libertar o ex-presidente a curto prazo.
O texto de Paulinho da Força incluiu, ainda, uma cláusula extremamente controversa, que foi descrita nos bastidores como uma “mamata” penal: a possibilidade de que o tempo passado em prisão domiciliar seja utilizado para redução da pena. No Brasil, já existe um sistema que permite a redução de pena por trabalho ou leitura (o condenado lê um livro, faz um resumo e reduz alguns dias da sentença). A inovação do PL é que essa benesse de redução por leitura ou trabalho seria aplicada ao período de prisão domiciliar, mas apenas para os condenados por crimes contra o Estado Democrático de Direito ou Golpe de Estado.
Essa é uma exceção jurídica de grande peso. Na legislação penal brasileira, um indivíduo condenado por homicídio, mesmo com todas as atenuantes, pode cumprir uma pena de reclusão de cerca de três anos. A criação de um “tipo penal” mais brando, que permite a redução da pena em casa apenas para crimes contra a democracia, escancarou o caráter político da proposta. Enquanto criminosos comuns não têm esse privilégio durante a prisão domiciliar, aqueles que atentaram contra a ordem constitucional teriam uma espécie de “lei especial” à sua disposição. O uso de ferramentas de inteligência artificial, como o Chat GPT, para a elaboração de resumos de livros lidos em prisão domiciliar, foi ironicamente citado como uma forma de burlar o sistema e reduzir substancialmente a pena, o que agravaria ainda mais a anomalia jurídica criada pelo projeto.
O Pânico da Extrema-Direita e a Ameaça de Retaliação
A divulgação do texto final causou um imediato “pânico” nos líderes da extrema-direita. A principal preocupação não era apenas o fato de o ex-presidente continuar sob custódia, mas sim o risco de uma retaliação por parte do Supremo Tribunal Federal (STF), especialmente dos ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes.
O PL da Dosimetria trata apenas dos crimes de Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito e Golpe de Estado. Ele não atinge os inquéritos e ações penais em curso por outros crimes graves, como peculato, roubo de dinheiro público, genocídio durante a pandemia ou superfaturamento de vacinas. O receio é que, antes que o ex-presidente atinja a progressão de regime pela condenação atual (18 ou 19 anos), o STF e a Justiça Federal o condenem e emitam novos mandados de prisão por esses outros processos. A retaliação judicial seria um golpe fatal e faria com que o período de reclusão se estendesse indefinidamente.
Diante do cenário de derrota iminente, o líder do PL na Câmara (amigo de Silas Malafaia), anunciou publicamente a insatisfação do partido com o resultado, qualificando a dosimetria como apenas um “degrau possível”. Ele prometeu que a luta pela anistia total será retomada no próximo ano legislativo, a partir de fevereiro.
A manobra da dosimetria, portanto, não apenas falhou em seu propósito original, mas também evidenciou a complexidade e a hipocrisia das negociações políticas. O grupo que se posiciona como “defensor da moral e dos bons costumes” atuou para criar uma lei com um privilégio penal específico para quem atenta contra a democracia, enquanto o sistema prisional comum permanece inalterado para os crimes de maior violência. A democracia brasileira, que se provou mais resiliente do que o esperado, conseguiu frustrar a tentativa de anistia total, mas a batalha contra a desarticulação institucional e os privilégios legislativos está longe de terminar. A próxima legislatura promete ser um campo de batalha ainda mais árduo.