
A culpa era um peso gélido que Amara Souza carregava no corpo. Desde aquela tarde terrível, quando o seu filho, Miguel, se fora num instante de distração, ela jurara nunca mais olhar para uma criança. A imagem do filho, a assombrar cada passo, transformara-a numa sombra de si mesma, forçando-a a procurar o trabalho que a mantinha invisível: a faxina.
Aos 28 anos, Amara estava parada em frente ao portão imponente da mansão do milionário Dário Castelar. O porteiro confirmou o seu nome, e ela caminhou pelo jardim perfeitamente cuidado, observando a riqueza que gritava de cada detalhe, mas sentindo algo frio e silencioso que a incomodava, como se a tristeza se tivesse instalado ali.
A porta abriu-se, revelando Odete Almeida, a cunhada de Dário, uma mulher loira, elegante e com uma expressão permanentemente severa.
“Você deve ser a candidata a faxineira. Eu sou Odete Almeida, responsável pela casa. Sente-se ali. Vou ser direta consigo. Esta casa precisa de alguém discreta, que entenda o seu lugar e não se meta onde não deve,” disse Odete. “O Dário está a passar por um momento difícil após a morte da minha irmã. Além disso, há uma criança na casa. Lino tem três anos e está sob os meus cuidados. Não quero que ninguém interfira na educação dele. Está aqui apenas para limpar, não para opinar sobre nada.”
O coração de Amara apertou-se ao ouvir o nome da criança.
“Claro. Eu só quero trabalhar,” Amara respondeu, mantendo a voz firme, mas a sua mente estava dividida entre a necessidade desesperadora do emprego e o medo de conviver com um menino da idade que o seu Miguel teria hoje.
“Tem filhos?” A pergunta foi um soco no estômago.
“Não,” Amara conseguiu mentir. “Melhor assim. Crianças são uma distração no trabalho.”
Nesse instante, passos apressados ecoaram na escadaria e uma voz infantil gritou lá de cima.
“Tia Odete! Tia Odete!”
“O que é que eu disse sobre gritar dentro de casa, Lino?” repreendeu Odete, dura.
Um menino pequeno, de cabelos escuros e olhos grandes, apareceu no topo da escada. Desceu a correr, mas parou abruptamente ao ver Amara.
“Quem é ela?” perguntou o menino, escondendo-se atrás da poltrona.
“É a nova faxineira. Agora, vai brincar no teu quarto. Lino! Obedece já!”
Amara sentiu o peito acelerar. Ele era tão parecido com o seu Miguel, a mesma expressão curiosa e tímida.
Odete obteve a aceitação de Amara e avisou: “Chegue amanhã às oito em ponto. Não se atrase.” Ao sair, Amara olhou para trás e viu o rosto do menino na janela do segundo andar. Ele acenou timidamente, e a dor familiar no seu peito avisou-a de que trabalhar ali seria mais um desafio do que um alívio.
Na manhã seguinte, Odete deu as instruções: “Você limpa apenas o rés-do-chão. O quarto de Lino é no segundo andar, e só entra lá com a minha autorização. A criança tem horários rígidos e não pode ser perturbada. Nessa idade, já deve aprender a ser independente.”
Amara ficou chocada com a frieza. Naquela idade, o seu Miguel ainda dormia aninhado nos seus braços.
Assim que Odete saiu, Lino desceu a correr para a cozinha. “A tia saiu?” sussurrou ele, como se fosse um segredo.
“Saiu, mas devias estar no teu quarto.”
“Eu não gosto de ficar sozinho lá. É muito escuro e silencioso. Aqui na cozinha tem mais luz e às vezes posso ver os passarinhos no jardim.”
Enquanto Amara limpava, Lino sentou-se no chão, a brincar com o seu ursinho de peluche desgastado. Ele estava magro e pálido.
“Lino, tu comes bem?”
“A tia Odete diz que comida a mais faz mal às crianças. Ela diz que a minha mãe morreu porque comia muito doce.”
O sangue de Amara ferveu. “A tua tia disse isso?”
“Disse. Ela fala que se eu não obedecer, vou ficar doente como a minha mãe ficou.”
“A tua mãe não escolheu deixar-te, Lino. Às vezes, as pessoas ficam doentes e não conseguem ficar connosco, mas isso não significa que não nos amam.”
“E o teu pai? Tu brincas com ele?”
O rosto do menino ficou triste. “O papai está sempre a trabalhar. Quando está em casa, fica no escritório. A tia Odete diz que eu não posso incomodar, porque ele está muito triste.”
“Escuta bem, Lino. Todas as pessoas choram às vezes, até os adultos. Não há problema nenhum nisso.”
“Eu falo com a minha mãe antes de dormir. Conto-lhe como foi o meu dia. Tu achas que ela responde?”
“Eu acho que ela responde que te ama e que um dia se vão encontrar de novo,” Amara conseguiu sorrir, as lágrimas nos olhos.
Quando Odete voltou, Amara já sabia o essencial: o menino estava carente, isolado, e a tia mentia sobre o seu comportamento para mantê-lo longe do pai.
Dias depois, Amara percebeu o objetivo do plano. Ela ouviu Odete ao telefone, a marcar uma consulta e a dizer: “O meu sobrinho está a apresentar comportamentos preocupantes. O pai trabalha demais, não tem tempo para o cuidar adequadamente.”
Odete estava a construir um caso contra Dário para o fazer parecer um pai negligente. Amara viu os documentos de guarda e pesquisas sobre negligência parental escondidos no armário de Lino. Odete estava a planear tirar a criança do pai para ter acesso à herança da família.
Numa sexta-feira, Odete finalmente atacou Amara diretamente.
“Sabe, eu sempre confirmo as referências dos funcionários. Descobri algumas coisas interessantes sobre si. A sua ex-patroa disse que foi demitida porque começou a ter problemas emocionais. Ela mencionou algo sobre ter perdido um filho. É verdade?”
Amara fechou os punhos. “Sim. É verdade que perdi o meu filho.”
“E não acha que é problemático trabalhar numa casa com uma criança da mesma idade que o seu filho teria?” Odete inclinou-se. “Notei como olha para o Lino. Parece que está a tentar substituir o seu filho morto. Sabe o que mais descobri sobre si? Que o seu filho morreu porque o deixou sozinho. Negligência, não foi?”
Amara estava a tremer de raiva e dor. Odete descobriu a sua maior vulnerabilidade e estava a usá-la como arma.
“Sabe o que eu acho? Acho que está a tentar usar o Lino para diminuir a sua culpa. Está a projetar nele o filho que perdeu por sua própria irresponsabilidade.”
“Eu disse para parar!” gritou Amara.
Odete, triunfante, continuou: “Uma criança que perdeu a mãe não deveria apegar-se a alguém com histórico de negligência. Se eu a vir a interferir de novo, vou contar tudo a Dário, e será demitida na hora.”
Amara sabia que estava encurralada.
Na segunda-feira, Odete recebeu a ligação: Dário chegaria em casa mais cedo. Era a sua oportunidade de armar o golpe final.
“Lino! Venha aqui agora! O seu pai vai chegar mais cedo,” gritou Odete. Ela encheu um copo grande de sumo e ordenou: “Leve isto para a mesa da varanda.”
O copo estava pesado demais para as mãos pequenas do menino. Quando Lino estava quase a chegar, Odete estendeu o pé deliberadamente. Lino tropeçou, e o sumo derramou-se no chão.
“Lino! Olhe o que fizeste! Que bagunça horrível!” Odete arrastou o menino para a cozinha. “Agora vais aprender a comportar-te direito!”
“Tia, por favor, não apague a luz!” implorou Lino, com a voz trémula. “Eu tenho muito medo do escuro.”
Ignorando os apelos, Odete empurrou Lino para dentro da cozinha e apagou todas as luzes. Depois, pegou nele, sentou-o na pia alta e trancou a porta por fora.
“Ficas aí até eu decidir que podes descer. E se tentares sair sozinho, vais magoar-te.”
De dentro da cozinha trancada vinham soluços abafados e pedidos desesperados: “Alguém me ajuda, está muito escuro!”
Amara estava horrorizada, paralisada. Era Miguel ali em cima, de novo, sozinho, assustado. O trauma daquela tarde terrível regressou, paralisando-a na porta da cozinha.
“Amara! Por que não me ajudas?” implorava Lino. “Você prometeu que não ia embora!”
Amara não conseguia mexer-se. Não conseguira salvar o seu filho, e agora não conseguia salvar Lino. “Eu não posso,” ela sussurrou, tremendo. “Eu não consegui salvar nem o meu próprio filho.”
O barulho do carro na garagem. Dário tinha chegado.
“Papai! Papai chegou! Papai, ajuda-me!” gritou Lino.
Odete destrancou a porta e disse a Amara: “Entre e termine a sua limpeza. Mas não se meta com o menino.”
Amara abriu a porta da cozinha e acendeu a luz. Lino estava sentado na pia alta, a balançar perigosamente, o rosto molhado de lágrimas.
“Amara! Ajuda-me, eu não consigo descer, está muito alto!”
Dário irrompeu na cozinha. “Meu Deus, Lino! Como é que foste parar aí em cima?”
Odete surgiu atrás de Amara, com a sua voz dramática: “Dário, graças a Deus que chegaste! Eu apanhei-a a fazer isto ao Lino. Ela colocou-o lá em cima!”
Dário olhou para Amara, depois para Lino. A cena confirmava as palavras de Odete.
“É verdade o que ela está a dizer sobre o seu filho?” perguntou Odete, triunfante.
Amara fechou os olhos. “É verdade que perdi o meu filho. É verdade que foi culpa minha.”
“Confessou!” Odete exultou. “Ela estava a tentar fazer-te perder o teu filho também, Dário! É vingança.”
Mas Lino, nos braços do pai, protestou: “Não é mentira, papai! A tia Odete ficou zangada porque eu derrubei o sumo e pôs-me lá em cima no escuro! Ela disse para eu ficar ali até aprender a comportar-me!”
A mentira de Odete estilhaçou-se. Amara sentiu a dor paralizante a ser substituída por uma fúria protetora que vinha da alma.
“Não,” disse ela, com a voz que não reconhecia. “Eu disse: ‘Não.’ Não vou embora sem falar a verdade.”
Amara endireitou-se, limpando as lágrimas. “A diferença entre mim e ela é que eu amava o meu filho, e nunca o coloquei em perigo de propósito. Ela, no entanto, pôs Lino na pia, trancou-o no escuro, e mentiu sobre o comportamento dele para construir um caso de negligência parental e tirar-te o teu filho! Eu vi os documentos no armário dele! Pesquisas sobre a guarda de crianças! Ela estava a usar a morte da própria irmã para te manipular e magoar o teu sobrinho!”
Dário olhou para Odete, o horror a crescer no seu rosto. “É verdade, Odete? Estavas a tentar tirar-me o meu filho?”
“Eu estava a tentar educá-lo!” gaguejou Odete, a sua máscara a cair aos pedaços.
“Tu estavas a destruir a autoestima de uma criança!” gritou Amara. “Dizias-lhe que o pai não o amava!”
Dário colocou Lino no chão e aproximou-se da cunhada, imponente. “Odete, quero que saias da minha casa agora. Família não magoa uma criança indefesa. Família não mente. Tens quinze minutos para fazer as tuas malas.”
Odete subiu as escadas, a pisar forte. Dário virou-se para Amara.
“Obrigado. Obrigado por protegeres o meu filho quando eu não estava aqui para o fazer.”
“Ele não está sozinho,” disse Amara, pegando Lino no colo. “Ele tem quem realmente se importa com esta família.”
Odete saiu, batendo a porta. Dário olhou para Lino nos braços de Amara.
“Papai, agora a Amara pode morar aqui connosco?”
Dário olhou para Amara. “Lino, a Amara tem a casa dela…”
“Mas eu quero que ela more aqui. Ela canta para mim antes de dormir.”
“E que música é que ela canta?” Dário sorriu pela primeira vez em meses.
“Boi da cara preta.”
Amara, com Lino aninhado, começou a cantar baixinho a mesma música que cantava para Miguel, mas desta vez, em vez de dor, sentiu uma paz profunda.
“Amara,” disse Dário. “Fica connosco. Não como funcionária, como família. Tu salvaste o meu filho. Tu salvaste a minha vida.”
“Eu amo-o,” respondeu Amara, olhando para Lino. “Eu amo este menino como se fosse o meu próprio filho.”
Naquela noite, pela primeira vez em dois anos, Amara dormiu sem pesadelos. Ela sonhou com Miguel, mas desta vez ele estava a sorrir, orgulhoso por ela ter protegido outra criança. Ela tinha encontrado a redenção não no esquecimento da dor, mas na sua transformação em força para amar e proteger. O destino tinha-lhe dado uma segunda chance, e ela não ia desperdiçá-la. A família Castelar tinha encontrado o seu coração numa mulher que a sociedade tinha tornado invisível, mas que se revelara a sua guardiã mais preciosa.