O aroma doce da cana-de-açúcar misturava-se ao suor e ao sofrimento que pairava sobre o Engenho Morro Rubro, como uma nuvem pesada que nunca se dissipava. Era o ano de 1793 e nas terras da Bahia colonial, onde o sol escaldante castigava tanto a terra quanto os corações, uma história de coragem e resistência estava prestes a se desenrolar entre os canaviais que se estendiam até onde a vista alcançava.

O som ritmado dos machados cortando a cana ecoava desde o amanhecer, misturando-se aos gemidos abafados daqueles que trabalhavam sob o chicote implacável dos feitores. Balbina acordou antes do primeiro canto do galo, como sempre fazia há 15 anos. Seus pés descalços tocaram o chão frio da senzala e ela se levantou em silêncio para não despertar as outras mulheres que dormiam ao seu lado.
O ar da madrugada carregava o cheiro familiar da terra úmida e do melaço que grudava em tudo naquele lugar. As paredes de pau a pique da senzala exalavam a umidade da noite e através das frestas ela podia ver as primeiras luzes da Casa Grande se acendendo na distância. Aos 32 anos, Balbina havia aprendido que a sobrevivência dependia de observar cada detalhe, de memorizar cada rotina, de entender os humores de seus senhores melhor do que eles próprios.
Trabalhava na Casa Grande há mais de uma década, primeiro como ajudante na cozinha, depois assumindo o posto de cozinheira principal quando a antiga morreu de febre. Suas mãos calejadas conheciam cada panela, cada tempero, cada segredo culinário que mantinha a mesa dos senhores sempre farta. A trajetória de Balbina no engenho havia sido marcada por pequenas vitórias e grandes perdas.
Chegara ali ainda criança, arrancada dos braços de sua mãe em um mercado de escravos em Salvador. Durante anos, trabalhou nos canaviais sob o sol inclemente, até que suas habilidades culinárias chamaram a atenção da antiga cozinheira, uma mulher idosa chamada Benedita, que se tornou sua mentora e segunda mãe.
Benedita havia lhe ensinado não apenas os segredos da culinária, mas também as artes da sobrevivência em um mundo hostil. “Menina,” costumava dizer a velha cozinheira, “nossa força está em saber mais sobre eles do que eles sabem sobre nós. Observe tudo, guarde tudo e um dia essa sabedoria pode salvar sua vida.”
Enquanto caminhava pela trilha que levava à Casa Grande, Balbina pensava na conversa que havia escutado na noite anterior. Escondida atrás da porta da despensa, ouvira Álvaro Correia do Carmo, o senhor do engenho, conversando com outros fazendeiros sobre a venda de algumas famílias de escravos. Entre os nomes mencionados estava o de Joaquim, seu companheiro há 8 anos, e o de sua filha Maria, de apenas 12 anos.
O relacionamento com Joaquim havia florescido lentamente ao longo dos anos. Ele chegara ao engenho como um jovem forte e determinado, trazido de uma fazenda no interior de Pernambuco após uma revolta de escravos. Inicialmente desconfiado e revoltado, Joaquim gradualmente encontrou em Balbina uma companheira que compreendia sua dor e compartilhava seus sonhos de liberdade.
Juntos haviam criado Maria, uma menina inteligente e observadora que herdara a determinação da mãe e a força silenciosa do pai. O coração de Balbina apertou-se como um punho fechado. Ela sabia que esse dia chegaria, mas nunca estava preparada para enfrentar a possibilidade de perder as únicas pessoas que ainda lhe davam força para continuar.
Joaquim trabalhava no canavial desde o amanhecer até o anoitecer e Maria ajudava na Casa Grande, aprendendo os ofícios domésticos sob a supervisão rigorosa de Balbina. A Casa Grande do Engenho Morro Rubro era uma construção imponente, com suas paredes caiadas e telhas vermelhas que brilhavam sob o sol matinal. Construída no alto de uma colina, dominava toda a paisagem circundante, simbolizando o poder absoluto de seus proprietários sobre as terras e as vidas que ali se desenrolavam.
Os jardins bem cuidados contrastavam drasticamente com as condições precárias da senzala, criando um mundo de contrastes que definia a realidade colonial. Ao entrar na cozinha da Casa Grande, Balbina encontrou-se face a face com Sinhá Emília Bernarda, a esposa de Álvaro. A mulher estava sentada à mesa, tamborilando os dedos impacientes sobre a madeira polida.
Seus olhos frios fixaram-se em Balbina com uma expressão de descontentamento que ela conhecia bem. Sinhá Emília era conhecida por sua beleza e por sua crueldade em igual medida. Uma mulher que havia crescido em meio ao luxo e ao poder, nunca questionando o sistema que a colocara no topo da hierarquia social.
“Você está atrasada”, disse Sinhá Emília, sua voz cortante como uma lâmina. “O café deveria estar pronto há 10 minutos”. Balbina baixou a cabeça respeitosamente, embora por dentro sentisse uma raiva crescente queimando como brasa. “Peço perdão, Sinhá. Vou preparar imediatamente.”
A cozinha da Casa Grande era o coração da propriedade, um espaço amplo com fogão a lenha, grandes panelas de ferro e prateleiras repletas de especiarias importadas e ingredientes locais. Era ali que Balbina passava a maior parte de seus dias, criando os pratos que sustentavam a família dos senhores e seus frequentes convidados. Cada refeição era uma demonstração de status, uma forma de exibir riqueza e refinamento para os visitantes.
Enquanto movia-se pela cozinha, preparando o café e organizando os ingredientes para o desjejum, Balbina observava Sinhá Emília pelo canto do olho. A senhora do engenho era conhecida por sua crueldade, especialmente com as mulheres escravas. Havia histórias sussurradas na senzala sobre castigos severos aplicados por motivos insignificantes, sobre famílias separadas por capricho, sobre vidas destruídas por pura maldade.
Uma dessas histórias envolvia Joana, uma jovem escrava que havia sido vendida para um engenho distante, simplesmente porque Sinhá Emília suspeitara que seu marido a achava atraente. A separação de Joana de seus filhos pequenos havia deixado cicatrizes profundas na comunidade da senzala, um lembrete constante da fragilidade de seus laços familiares.
“Balbina,” chamou Sinhá Emília, sua voz ecoando pela cozinha. “Meu marido receberá visitas importantes hoje à noite. Quero que prepare um jantar especial. Nada de erros, você me entende?” “Sim, Sinhá. Farei o melhor jantar que a senhora já provou.” Sinhá Emília sorriu, mas não havia calor naquela expressão.
“Espero mesmo, porque se algo der errado, você sabe muito bem quais serão as consequências.” As ameaças veladas de Sinhá Emília não eram vazias. Balbina havia presenciado castigos brutais aplicados por falhas muito menores do que um jantar mal preparado. O tronco, onde os escravos eram amarrados e açoitados, ficava estrategicamente posicionado no pátio central, visível de todos os pontos da propriedade, como um lembrete constante do poder absoluto dos senhores.
Após a saída da Sinhá, Balbina permaneceu sozinha na cozinha, suas mãos tremendo ligeiramente enquanto preparava a massa do pão. Era então que Maria apareceu na porta, seus olhos grandes e assustados fixos no rosto da mãe. A menina havia herdado a beleza da mãe, mas também sua inteligência aguçada e sua capacidade de observação.
Aos 12 anos, ela já compreendia as complexidades e perigos de sua condição. “Mãe,” sussurrou a menina. “Ouvi o senhor Álvaro falando com outros homens. Eles estavam, eles estavam falando sobre nos vender.” Balbina sentiu o mundo girar ao seu redor. Suas piores suspeitas estavam se confirmando.
Ela puxou a filha para perto, abraçando-a com força, sentindo o corpo pequeno tremer contra o seu. O cheiro dos cabelos de Maria, misturado ao aroma do pão assando, criou um momento de ternura em meio ao desespero crescente. “Não se preocupe, minha filha. Sua mãe vai encontrar um jeito de nos proteger.” Mas mesmo enquanto pronunciava essas palavras de consolo, Balbina sabia que suas opções eram limitadas.
Não havia para onde fugir. Não havia autoridade superior para recorrer. Eles eram propriedade, objetos que podiam ser vendidos, trocados ou descartados conforme a vontade de seus senhores. A legislação colonial não reconhecia direitos para os escravos e qualquer tentativa de resistência era punida com severidade extrema.
Maria permaneceu abraçada à mãe por alguns minutos, absorvendo o calor e a força que emanavam daquele corpo que tanto trabalhara para protegê-la. A menina havia crescido observando a determinação silenciosa de Balbina, aprendendo que a sobrevivência exigia não apenas obediência, mas também inteligência e paciência. Foi então que os olhos de Balbina pousaram sobre o saco de farinha de mandioca guardado na despensa.
Uma ideia começou a formar-se em sua mente, perigosa e desesperada, mas talvez a única chance que teriam. A farinha, ela notara alguns dias, estava começando a apresentar sinais de deterioração devido ao calor excessivo e à umidade do armazém.
Benedita havia lhe ensinado sobre os perigos de alimentos estragados, mas também sobre como esses conhecimentos poderiam ser usados quando necessário. A farinha de mandioca era um alimento básico na dieta colonial, presente em quase todas as refeições. Quando fermentada ou estragada, podia causar diversos problemas digestivos, desde simples mal-estar até sintomas mais severos, como fraqueza extrema e desmaios.
O conhecimento sobre plantas e alimentos havia sido transmitido de geração em geração entre as mulheres escravas, uma forma de medicina popular que muitas vezes era a única assistência médica disponível. Enquanto Maria retornava às suas tarefas, Balbina examinou cuidadosamente a farinha suspeita. O cheiro ligeiramente azedo e a textura alterada confirmaram suas suspeitas.
Aquela farinha, se consumida em quantidade suficiente, poderia causar exatamente os sintomas que ela precisava para implementar seu plano desesperado. O sol do meio-dia castigava impiedosamente o engenho quando Balbina saiu da Casa Grande para buscar ingredientes frescos na horta. O calor era sufocante, criando ondas de vapor que distorciam a paisagem e tornavam o ar quase irrespirável.
Os escravos que trabalhavam nos canaviais moviam-se lentamente, conservando energia para sobreviver a mais um dia sob o sol inclemente. Suas mãos ainda tremiam ligeiramente, mas sua determinação crescia a cada passo. Ela havia tomado uma decisão que poderia custar sua vida, mas também poderia salvar sua família. A horta do engenho era um oásis de verde em meio à vastidão dos canaviais.
Localizada próxima à Casa Grande para facilitar o acesso aos ingredientes frescos, era cuidadosamente mantida por Joaquim e outros escravos especializados. Ali cresciam verduras, legumes e ervas que abasteciam tanto a mesa dos senhores quanto as necessidades medicinais básicas da senzala. Na horta encontrou Joaquim trabalhando sob o sol escaldante, seu corpo musculoso brilhando de suor enquanto cuidava das verduras que abasteciam a mesa dos senhores.
Aos 40 anos, ele mantinha a força física que o tornara valioso como trabalhador, mas seus olhos carregavam o peso de décadas de sofrimento e resistência silenciosa. Ao vê-la aproximar-se, ele sorriu, mas o sorriso desapareceu quando notou a expressão tensa em seu rosto. “O que aconteceu?”, perguntou ele em voz baixa, olhando ao redor para certificar-se de que estavam sozinhos.
A paranoia era uma característica necessária para a sobrevivência no engenho. Os feitores tinham olhos e ouvidos em todos os lugares, e qualquer conversa suspeita podia resultar em castigos severos. Joaquim havia aprendido a ler as expressões de Balbina como um livro aberto, reconhecendo imediatamente quando algo grave estava acontecendo.
Balbina contou-lhe sobre a conversa que Maria havia escutado, sobre os planos de venda, sobre o medo que consumia seu coração. Cada palavra era pronunciada em sussurros, enquanto ambos fingiam examinar as plantas ao redor. Joaquim ouviu em silêncio, seus punhos cerrando-se gradualmente, até que os nós dos dedos ficaram esbranquiçados. “Não podemos deixar isso acontecer,” murmurou ele, sua voz carregada de uma raiva contida.
“Maria é apenas uma criança. Ela não merece ser separada de nós.” A dor na voz de Joaquim ecoava experiências passadas. Ele próprio havia sido separado de sua primeira família quando ainda era jovem, vendido após uma tentativa fracassada de fuga. A lembrança daquela separação ainda o assombrava e a ideia de que Maria pudesse passar pelo mesmo sofrimento era insuportável.
“Eu sei,” respondeu Balbina, olhando profundamente nos olhos do homem que amava. Eho! “Mas é perigoso, Joaquim, se descobrirem.” “Fale,” disse ele, sua voz firme, apesar do medo que brilhava em seus olhos. Balbina explicou sua ideia com detalhes cuidadosos. Ela havia notado que a farinha de mandioca guardada na despensa estava começando a fermentar devido ao calor e à umidade.
Se consumida em grandes quantidades, poderia causar mal-estar, fraqueza, até mesmo desmaios. Seu plano era misturar essa farinha estragada na comida de Sinhá Emília durante o jantar especial daquela noite. O conhecimento sobre os efeitos de alimentos deteriorados havia sido passado para Balbina por Benedita, que por sua vez havia aprendido com outras mulheres mais velhas.
Era um tipo de sabedoria ancestral transmitida em segredo entre as gerações de escravas, uma forma de resistência silenciosa que raramente era detectada pelos senhores. “Se ela ficar doente, talvez o Sr. Álvaro adie os negócios. Isso nos daria tempo para encontrar outra solução, ou pelo menos para nos prepararmos melhor,” explicou Balbina.
Joaquim ficou em silêncio por um longo momento, pesando as consequências. Eles sabiam que se fossem descobertos, o castigo seria severo, possivelmente fatal, mas a alternativa era aceitar passivamente a separação de sua família. Ele lembrou-se de outras famílias que haviam sido separadas, dos gritos desesperados de mães sendo arrancadas de seus filhos, dos homens que nunca mais foram vistos após serem vendidos para engenhos distantes.
“Faça o que precisa fazer,” disse ele finalmente. “Eu estarei aqui para proteger vocês, aconteça o que acontecer.” As palavras de Joaquim carregavam o peso de uma promessa solene. Ambos sabiam que as opções de proteção eram limitadas, mas o compromisso mútuo de lutar pela família era tudo o que tinham em um mundo que constantemente ameaçava destruir seus laços mais preciosos.
O resto da tarde passou como um borrão para Balbina. Ela preparou meticulosamente cada prato do jantar, suas mãos trabalhando automaticamente, enquanto sua mente repassava cada detalhe do plano. A farinha estragada foi cuidadosamente misturada ao molho que acompanharia a carne principal, em quantidade suficiente para causar desconforto, sem levantar suspeitas imediatas.
A preparação do jantar especial exigia toda a sua expertise culinária. O cardápio incluía carne de porco assada com especiarias importadas, farofa de mandioca, feijão tropeiro, doces de goiaba e caju e vinho português para acompanhar. Cada prato era uma demonstração da riqueza e do refinamento da família Correia do Carmo, ingredientes caros e preparações elaboradas que contrastavam drasticamente com a dieta simples e repetitiva da senzala.
Enquanto cozinhava, Balbina refletia sobre a ironia de sua situação. Ela, que havia dedicado anos de sua vida a nutrir e satisfazer os paladares de seus opressores, agora planejava usar essas mesmas habilidades como arma de resistência. O conhecimento que havia adquirido sobre temperos e ingredientes seria usado não para agradar, mas para causar desconforto e, esperava ela, mudança.
Maria circulava pela cozinha, ajudando nos preparativos, inconsciente do plano que se desenrolava ao seu redor. A menina havia aprendido a ser útil e invisível ao mesmo tempo. Uma habilidade essencial para a sobrevivência no ambiente hostil da Casa Grande. Seus movimentos eram precisos e silenciosos, resultado de anos de treinamento sob a supervisão rigorosa de Balbina.
Quando o sol começou a se pôr, tingindo o céu de tons alaranjados, os convidados de Álvaro começaram a chegar. Eram outros fazendeiros da região, homens ricos e poderosos que vinham discutir negócios. E Balbina sabia: finalizar acordos sobre a compra e venda de seres humanos. Suas carruagens elegantes contrastavam com a simplicidade dos alojamentos dos escravos, símbolos móveis da hierarquia social que dominava a sociedade colonial. Os convidados eram figuras conhecidas na região.
Coronel Antônio Ferreira, dono de três engenhos no Recôncavo baiano, Major José Pereira da Silva, comerciante de escravos com conexões em Salvador e Rio de Janeiro, e Capitão Manuel Rodrigues, proprietário de uma das maiores plantações de tabaco da região. Todos eram homens acostumados ao poder absoluto que viam os escravos como investimentos a serem gerenciados com eficiência máxima.
Maria ajudava a servir a mesa, seus movimentos cuidadosos e silenciosos, como Balbina havia lhe ensinado. A menina não sabia do plano da mãe, mas percebia a tensão no ar, a maneira como Balbina observava cada movimento de Sinhá Emília com intensidade quase palpável. A capacidade de Maria de ler as emoções dos adultos ao seu redor havia sido desenvolvida como mecanismo de sobrevivência, uma forma de antecipar perigos e reagir adequadamente.
O jantar transcorreu normalmente nas primeiras horas. Os homens conversavam sobre preços do açúcar, sobre as revoltas de escravos em outras regiões, sobre a necessidade de manter ordem e disciplina em suas propriedades. As conversas revelavam a mentalidade da elite colonial, preocupada principalmente com lucros e controle social, vendo os escravos como ameaças potenciais que precisavam ser constantemente vigiadas e reprimidas.
“As notícias do Haiti são preocupantes,” comentava o Coronel Ferreira, referindo-se à revolução escrava que havia abalado o Caribe. “Precisamos tomar medidas preventivas para evitar que ideias perigosas se espalhem entre nossos trabalhadores.” “Concordo plenamente,” respondia Álvaro.
“Disciplina rigorosa e separação de elementos problemáticos são essenciais para manter a ordem.” Sinhá Emília participava da conversa com comentários pontuais, sempre demonstrando sua concordância com as opiniões mais severas sobre o tratamento dos escravos. Sua educação havia sido moldada pelos valores da aristocracia colonial, ensinando-a a ver a escravidão não apenas como natural, mas como necessária para a manutenção da civilização.
Balbina serviu cada prato com mãos firmes, seu rosto mantendo a expressão neutra que havia aperfeiçoado ao longo dos anos. Quando Sinhá Emília provou o molho especial, Balbina segurou a respiração, mas a senhora do engenho apenas acenou aprovando o sabor. O molho havia sido cuidadosamente temperado para mascarar qualquer sabor estranho da farinha estragada.
Uma demonstração da expertise culinária que Balbina havia desenvolvido ao longo dos anos. “Excelente como sempre,” comentou Sinhá Emília para os convidados. “Balbina é uma cozinheira excepcional. Uma pena que algumas vezes seja necessário se desfazer de bons elementos por questões financeiras.” As palavras atingiram Balbina como chicotadas, confirmando seus piores temores.
A venda estava mesmo sendo planejada e ela era vista apenas como uma questão financeira a ser resolvida. A frieza com que sua vida e a de sua família eram discutidas revelava a desumanização completa que caracterizava o sistema escravista. A noite avançava lentamente no Engenho Morro Rubro e Balbina observava cada movimento de Sinhá Emília com a atenção de um predador, esperando o momento certo para atacar.
A farinha estragada havia sido consumida há mais de uma hora e ela aguardava ansiosamente os primeiros sinais de que seu plano estava funcionando. O som das conversas masculinas ecoava pela sala de jantar, misturando-se ao tinir dos copos de cristal e ao ruído suave dos talheres contra a porcelana fina. Os convidados continuavam suas conversas sobre negócios, suas vozes ecoando pela sala de jantar, enquanto degustavam o vinho português que Álvaro guardava para ocasiões especiais. O tema principal da noite, como Balbina havia temido, era mesmo a compra e venda de escravos entre as propriedades da região. As discussões eram conduzidas com a mesma naturalidade com que se negociavam gado ou equipamentos. Uma demonstração chocante da normalização da escravidão na sociedade colonial. “Preciso de pelo menos três famílias,” dizia o Coronel Ferreira, um homem corpulento com bigode grisalho.
“Minha plantação está expandindo e preciso de mão de obra confiável para a próxima safra.” “Tenho exatamente o que você procura,” respondeu Álvaro, gesticulando com o copo de vinho. “Famílias trabalhadoras já adaptadas ao serviço. O preço é justo, considerando a qualidade e a experiência.” Major José Pereira da Silva juntou-se à conversa, seus olhos calculistas brilhando com interesse comercial.
“E quanto às mulheres jovens, tenho clientes em Salvador procurando por domésticas bem treinadas.” Balbina sentiu seu estômago revirar ao ouvir sua família sendo discutida como mercadoria. Ela continuou servindo em silêncio, mas por dentro uma tempestade de emoções ameaçava explodir. A naturalidade com que esses homens falavam sobre separar famílias, sobre vender seres humanos como objetos, revelava a profundidade da desumanização que caracterizava o sistema escravista.
Foi então que notou os primeiros sinais de que seu plano estava surtindo efeito. Sinhá Emília começou a parecer ligeiramente pálida, levando a mão ao estômago discretamente. Inicialmente, ela tentou disfarçar o desconforto, participando das conversas com comentários ocasionais, mas gradualmente tornou-se impossível ignorar os sintomas que se intensificavam.
O processo era lento e sutil, exatamente como Balbina havia planejado. A farinha estragada não causaria sintomas imediatos ou dramáticos que pudessem levantar suspeitas, mas sim um mal-estar progressivo que poderia ser atribuído a diversas causas.
Benedita havia lhe ensinado que a sutileza era essencial em qualquer forma de resistência, pois a detecção significava punição certa. “Emília, você está bem?”, perguntou Álvaro, notando a expressão de desconforto no rosto da esposa. “Apenas um pouco de calor,” respondeu ela, mas sua voz soava fraca e incerta. “Talvez seja melhor eu me retirar por alguns minutos.” Os convidados expressaram preocupação educada, mas rapidamente retornaram às suas discussões comerciais.
Para eles, o ligeiro indisposição da anfitriã era apenas um inconveniente menor em uma noite de negócios importantes. A frieza com que tratavam, até mesmo o desconforto de uma mulher de sua própria classe social revelava a dureza de caráter que caracterizava a elite colonial. Balbina observou Sinhá Emília levantar-se da mesa com dificuldade, apoiando-se na cadeira para manter o equilíbrio.
A farinha estragada estava fazendo seu trabalho, causando exatamente os sintomas que ela havia previsto. Sentiu uma mistura de satisfação e medo, sabendo que havia cruzado uma linha da qual não poderia mais voltar. A decisão de envenenar sua senhora era um ato de resistência que poderia custar sua vida, mas também representava uma afirmação de sua humanidade em um sistema que constantemente a negava.
“Balbina,” chamou Álvaro, sua voz carregada de preocupação genuína. “Acompanhe minha esposa ao quarto e veja se ela precisa de alguma coisa.” “Sim, senhor,” respondeu Balbina, seguindo Sinhá Emília pelos corredores da Casa Grande. Os corredores da Casa Grande eram decorados com móveis importados e quadros que retratavam a família Correia do Carmo em poses solenes.
As paredes caiadas refletiam a luz das velas, criando sombras dançantes que pareciam simbolizar os segredos e tensões que permeavam aquela residência. O contraste entre o luxo da Casa Grande e a simplicidade da senzala era um lembrete constante da desigualdade que definia a sociedade colonial. No quarto, Sinhá Emília desabou na cama, seu rosto agora visivelmente pálido e coberto de suor frio.
Ela respirava com dificuldade, uma mão pressionada contra o estômago, enquanto ondas de náusea a dominavam. O quarto, decorado com tecidos finos e móveis de madeira nobre, contrastava dramaticamente com o sofrimento de sua ocupante. “Busque o médico,” ordenou ela fracamente. “Algo está muito errado.” A ironia da situação não escapou a Balbina. Ali estava a mulher que havia causado tanto sofrimento a tantas pessoas. Agora vulnerável e dependente de cuidados.
A mesma pessoa que ordenara castigos cruéis e separações familiares agora implorava por ajuda de uma de suas vítimas. Balbina fingiu preocupação enquanto ajudava a senhora a se acomodar melhor na cama. “Vou preparar um chá que sempre ajuda com problemas de estômago, Sinhá. Talvez seja apenas algo que não caiu bem.”
“Faça isso rapidamente,” gemeu Sinhá Emília, fechando os olhos enquanto outra onda de mal-estar a atingia. Enquanto preparava o chá na cozinha, Balbina sentia o coração batendo acelerado. Seu plano estava funcionando melhor do que havia imaginado. Sinhá Emília estava claramente debilitada e isso certamente afetaria os negócios que estavam sendo discutidos naquela noite.
Ela preparou um chá de camomila e erva-doce, ervas genuinamente calmantes que ajudariam a aliviar os sintomas sem interferir no efeito da farinha estragada. O conhecimento sobre ervas medicinais era outro legado de Benedita, que havia aprendido com curandeiras africanas e indígenas.
Esse conhecimento era precioso na senzala, onde não havia acesso a médicos e os escravos dependiam de remédios caseiros para tratar doenças e ferimentos. Ironicamente, Balbina agora usava esse mesmo conhecimento para cuidar da mulher que havia envenenado. Quando retornou ao quarto com o chá, encontrou Álvaro ao lado da cama, sua expressão preocupada enquanto observava o estado da esposa.
Os convidados haviam se retirado, prometendo retornar quando Sinhá Emília estivesse melhor. A interrupção abrupta dos negócios era exatamente o que Balbina havia esperado alcançar. “Ela está muito fraca,” murmurou Álvaro para Balbina. “Nunca a vi assim. Você tem certeza de que não havia nada estragado na comida?” Balbina manteve a expressão neutra, embora por dentro sentisse uma pontada de medo.
“Verifiquei todos os ingredientes pessoalmente, senhor. Talvez seja apenas uma indisposição passageira.” A pergunta de Álvaro revelava uma suspeita natural, mas também sua dependência da expertise de Balbina na cozinha. Durante anos, ele havia confiado completamente em suas habilidades culinárias, nunca questionando seus métodos ou ingredientes.
Essa confiança agora trabalhava a favor de Balbina, fornecendo uma cobertura plausível para suas ações. Álvaro a sentiu, mas seus olhos permaneceram desconfiados. “Fique com ela esta noite. Se piorar, mande chamar o médico imediatamente.” Nas horas que se seguiram, Balbina permaneceu ao lado de Sinhá Emília, observando os efeitos da farinha estragada se intensificarem.
A senhora do engenho alternava entre períodos de fraqueza extrema e episódios de náusea, incapaz de manter qualquer alimento no estômago. Balbina administrava pequenas quantidades de água e chá, mantendo a aparência de uma cuidadora dedicada. Durante toda a noite, enquanto cuidava de Sinhá Emília, Balbina refletia sobre suas ações. Parte dela sentia-se culpada por causar sofrimento a outro ser humano.
Mas uma parte maior lembrava-se de todos os anos de humilhação, de todas as famílias que havia visto serem separadas, de todas as injustiças que havia presenciado em silêncio. O conflito moral era intenso, mas a necessidade de proteger sua família superava qualquer remorso. A noite trouxe consigo memórias dolorosas.
Balbina lembrou-se de Benedita, que havia morrido sozinha e abandonada quando não conseguiu mais trabalhar. Lembrou-se de Tomás, um jovem escravo que havia sido açoitado até a morte por tentar visitar sua mãe em um engenho vizinho. Lembrou-se de Ana, que havia enlouquecido após ver seus três filhos serem vendidos para fazendeiros diferentes.
Quando o amanhecer chegou, Sinhá Emília estava visivelmente mais fraca, mal conseguindo levantar a cabeça do travesseiro. Álvaro, preocupado com o estado da esposa, cancelou todos os compromissos do dia, incluindo as negociações sobre a venda dos escravos. A estratégia de Balbina havia funcionado perfeitamente, pelo menos temporariamente.
O sol nascia sobre o Engenho Morro Rubro, trazendo consigo uma atmosfera de tensão e incerteza. Sinhá Emília permanecia acamada, sua condição não apresentando melhora significativa após uma noite inteira de sofrimento. Álvaro havia mandado buscar o médico da cidade mais próxima, mas a viagem levaria pelo menos dois dias.
Balbina continuava cuidando da senhora doente, administrando pequenas porções de água e chá, observando atentamente cada sintoma. A farinha estragada havia causado exatamente o efeito que ela desejava, mas agora enfrentava um dilema moral que não havia antecipado completamente. Durante a manhã, enquanto trocava as compressas frias na testa de Sinhá Emília, a senhora agarrou fracamente seu pulso.
Seus olhos, normalmente frios e calculistas, agora refletiam vulnerabilidade e medo. “Balbina,” sussurrou ela com voz rouca. “Você sempre foi leal a esta família. Prometa-me que cuidará de mim até eu melhorar.” Por um momento, Balbina sentiu um conflito interno devastador. Aquela mulher à sua frente, tão frágil e dependente, era a mesma que havia ordenado castigos cruéis, que havia separado famílias, que havia tratado seres humanos como objetos, mas também era um ser humano sofrendo, pedindo ajuda. “Cuidarei da senhora, Sinhá,” respondeu Balbina, sua voz carregada de uma emoção complexa que ela mesma não conseguia definir completamente.
Ao meio-dia, Joaquim apareceu discretamente na cozinha, onde Balbina preparava outro chá para Sinhá Emília. Seus olhos buscaram os dela, procurando respostas para as perguntas que não podia fazer em voz alta. “Como ela está?”, perguntou ele em sussurros. “Fraca, muito fraca,” respondeu Balbina. “O Sr.
Álvaro cancelou todos os negócios até ela melhorar.” Joaquim assentiu, compreendendo o significado daquelas palavras. O plano havia funcionado, pelo menos temporariamente, mas ambos sabiam que era apenas uma vitória momentânea em uma guerra muito maior. “E agora?” perguntou ele. Balbina olhou em direção ao quarto, onde Sinhá Emília repousava, depois de volta para o homem que amava.
“Agora esperamos e rezamos para que encontremos uma solução permanente.” Os dias seguintes passaram em uma rotina tensa. Balbina cuidava de Sinhá Emília com dedicação genuína, administrando remédios caseiros e garantindo que ela se recuperasse gradualmente. A farinha estragada havia saído do organismo da senhora, mas a fraqueza persistia, mantendo-a acamada e incapaz de participar dos negócios do engenho. Foi durante essa recuperação que algo inesperado aconteceu. Sinhá Emília, em um momento de lucidez e gratidão, chamou Balbina para uma conversa particular. “Você salvou minha vida,” disse ela, sua voz ainda fraca, mas carregada de sinceridade. “Quando eu estava mais doente, você poderia ter me abandonado, mas não fez isso.” Balbina permaneceu em silêncio, não sabendo como responder àquelas palavras.
“Sei que nem sempre fui justa com vocês,” continuou Sinhá Emília, surpreendendo Balbina.