A Queda de um Monarca

O frio da manhã, de 21 de janeiro de 1793, cortava o ar de Paris como uma lâmina de gelo. Na Praça da Revolução – outrora a Praça Luís XV – um cadafalso de madeira simples e ameaçador aguardava no centro. Milhares de pessoas, um mar humano de olhares ansiosos e silenciosos, se espremeram atrás das barricadas. A tensão era quase palpável, um peso coletivo que pairava sobre a cidade.
No alto da estrutura, a lâmina inclinada da guilhotina reluzia sob o sol fraco de inverno. Lentamente, um homem subia os degraus. Era Luís XVI, o último rei da França, não Luís X. Ele vestia-se de branco, a cor do luto real, mas não havia coroa, nem glória, apenas a dignidade silenciosa de um mortal prestes a ser julgado pelo aço.
Um padre murmurava apressadamente orações, mas o rei mal escutava. O som abafado das vozes do povo o envolvia como o rugido distante de um oceano. Quando o carrasco, Charles-Henri Sanson, o amarrou firmemente à prancha, Luís fez uma última tentativa. Sua voz, embora embargada, ecoou por um breve instante: “Eu morro inocente…”
Mas não houve tempo para mais. O tambor começou a rufar, um ritmo marcial e ensurdecedor que engoliu as palavras do rei. Segundos depois, a lâmina despencou com um gemido metálico. O som seco do impacto ecoou pela praça, finalizando o ato. Um jato de sangue tingiu a madeira, e a multidão, após um momento de choque, irrompeu em gritos, aplausos e urros de triunfo.
Assim terminou o último rei do Ancien Régime. Mas para entender como um monarca absoluto chegou a este fatídico cadafalso, era preciso voltar alguns anos, ao tempo em que o trono de Versalhes ainda parecia inabalável.
O Fardo da Coroa
Luís XVI (o nome correto) nasceu para governar, mas não para brilhar. Diferente de seu avô, o extravagante Luís XIV, ou de seu antecessor, Luís XV, ele era um homem introspectivo, desajeitado e hesitante. Amava a metalurgia e a caça, preferindo a solidão da oficina real aos intrigas da corte.
Assumiu o trono em 1774, com apenas 20 anos, e herdou um reino em colapso silencioso. A França vivia no vermelho: guerras caras, como a Guerra dos Sete Anos e o apoio à Revolução Americana, haviam esvaziado os cofres. O sistema tributário era injusto, e a fome crescente. O povo passava necessidade, enquanto a corte de Versalhes, isolada em seu esplendor dourado, gastava fortunas em banquetes e festas.
O jovem rei, dotado de boas intenções, tentou ser justo. Desejava reformar os impostos, aliviar o peso sobre os camponeses e a burguesia, mas enfrentou a resistência de todos os lados: a Nobreza (que não queria pagar impostos), o Clero (que gozava de isenções) e os Banqueiros (que lucravam com a dívida real). Cada decreto reformista virava motivo de escândalo, e cada tentativa de mudança era engolida pela burocracia e pelo conservadorismo.
A Estrangeira Odiada

E no meio de tudo isso, havia ela: Maria Antonieta, sua esposa. Bela, espirituosa, mas notoriamente extravagante, a arquiduquesa austríaca tornou-se o símbolo de tudo o que o povo desprezava. Ela era a L’Autrichienne (A Austríaca), rica, rodeada de luxos, vivendo em uma bolha dourada em Versalhes.
Enquanto o povo pedia pão, Maria Antonieta pedia vestidos de Paris e Viena, diamantes e festas mascaradas. A infame frase “Que comam brioches” nunca foi dita por ela, mas o rumor, disseminado pelos panfletos e jornais da época, bastou para transformá-la na vilã suprema. Ela era retratada como a estrangeira perversa que esgotava as riquezas da França. E, embora Luís fosse o rei, era ela quem o povo culpava pela miséria.
Versalhes era uma miragem de opulência cercada por um oceano de miséria. E essa bolha estava prestes a estourar.
O Estouro da Bolha: 1789
Em 1789, a crise financeira se tornou insustentável. Os cofres estavam vazios, os camponeses famintos, os impostos impagáveis. Pressionado, o rei convocou os Estados Gerais, uma assembleia de representantes da Nobreza (Primeiro Estado), Clero (Segundo Estado) e Povo (Terceiro Estado) que não se reunia havia 175 anos. Luís esperava encontrar apoio para novas taxas.
Em vez disso, ele encontrou uma revolução.
Os representantes do Terceiro Estado, cansados da opressão da nobreza, se declararam Assembleia Nacional e juraram, no famoso Juramento da Sala do Jogo da Péla, não se dispersar até escrever uma nova Constituição. Luís XVI tentou contê-los, mandou fechar as portas, mas o movimento popular já era maior que ele.
Dias depois, em 14 de julho, o povo invadiu a Bastilha, símbolo da tirania e prisão política. O rei perdeu o controle do país, e a França nunca mais seria a mesma.
A Fuga Fracassada e o Fim da Ilusão
À medida que Paris ardia em revolta, Luís hesitou, como era seu costume. Assinava decretos liberais de dia – como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão – e planejava fugir à noite.
Em junho de 1791, disfarçado de servo comum, ele e a família real tentaram escapar em direção à fronteira austríaca, buscando apoio de outras monarquias. A fuga, no entanto, foi pateticamente amadora. Eles foram reconhecidos por um carteiro em Varennes, presos e levados de volta à capital sob vaias e silêncio hostil.
A imagem do rei covarde, tentando abandonar o próprio povo no momento de crise, destruiu o último resquício de respeito. A monarquia estava morta, restava apenas a formalidade. Luís foi forçado a aceitar uma monarquia constitucional, mas a França agora pertencia ao povo, e o povo exigia a República.
O Julgamento e o Destino Final
Os revolucionários mais radicais, os Jacobinos, viam em Luís XVI um símbolo vivo da opressão, o passado que precisava ser decapitado para que o futuro da República nascesse.
Em agosto de 1792, a família real foi presa na Torre do Templo. Luís perdeu tudo: poder, aliados e o nome. Passou a ser chamado apenas de Cidadão Luís Capeto.
Em dezembro de 1792, ele foi levado a julgamento perante a Convenção Nacional, acusado de traição, conspiração e inimigo da liberdade. Ele se defendeu com calma, mas o veredito já estava selado antes mesmo de o julgamento começar. Por uma margem estreita – apenas um voto de diferença – os deputados votaram pela morte.
Quando o resultado foi anunciado, o silêncio tomou a sala. O ex-rei olhou ao redor, respirou fundo e aceitou seu destino com uma resignação inesperada: “Aceito o destino que o céu me reserva.”
Naquela manhã fria de janeiro, a carruagem levou o ex-rei pela cidade. Luís manteve a calma, recusou a ajuda do carrasco e subiu os degraus sozinho. Suas últimas palavras foram engolidas pelo rufar dos tambores, mas o desejo foi registrado: “Eu morro inocente. Rezo para que meu sangue traga paz à França.”
O corte foi rápido. A cabeça caiu. O povo explodiu em catarse. A França matava o seu rei, mas o ato não trouxe paz. Seguiu-se o Reinado do Terror, onde a guilhotina ceifava vidas todos os dias, de nobres, revolucionários e até mesmo de quem ousasse questionar a nova ordem.
Luís XVI não foi um tirano cruel, mas um homem fraco e hesitante, preso num tempo violento que exigia força brutal. Sua cabeça rolou como símbolo da liberdade, mas também como um lembrete sangrento de que nenhuma coroa é eterna.
No silêncio que veio depois do aplauso, o último som a ecoar sobre Paris foi o da guilhotina.