
Raul Vila Nova odiava o Natal. Não se tratava de um simples desgosto ou de evitar a data, mas de um ódio profundo por tudo o que aquela época representava. As luzes coloridas que cintilavam pela cidade de São Paulo eram uma agressão aos seus olhos, os sorrisos forçados das pessoas irritavam-no, e o pior de tudo eram as melodias natalinas que tocavam em todo o lado.
Aos quarenta e dois anos, Raul era o dono de um império empresarial e a sua mansão no Jardim Europa era um reflexo perfeito da sua personalidade: fria, imponente e completamente desprovida de qualquer vestígio de calor humano. As paredes brancas e os móveis de design minimalista faziam o ambiente parecer mais um museu do que um lar.
Naquela manhã de dezembro, Raul estava no seu escritório quando Margarete, a sua secretária há quinze anos, entrou com uma pilha de documentos. Ele nem levantou os olhos dos relatórios. “Deixa aí. E Margarete, quero que cancele todas as reuniões da próxima semana.”
“Mas, senhor, tem compromissos importantes com os investidores japoneses.”
“Eu disse para cancelar”, interrompeu Raul, os olhos cinzentos faiscando. “Não quero ser incomodado durante o final do ano. Nada de telefonemas, nada de visitas, nada de cartões de Natal idiotas.”
Margarete engoliu em seco. “Entendido, senhor. E quanto à festa de confraternização da empresa?”
“Não haverá festa”, cortou Raul. “Distribua o décimo terceiro salário e pronto. Festa é perda de tempo e dinheiro.”
Depois que Margarete saiu, Raul voltou aos números. O trabalho era o seu refúgio, o único lugar onde tinha controlo total. Mais tarde, em casa, a mansão estava mergulhada no silêncio habitual. Raul serviu-se de um whisky e sentou-se na poltrona, olhando pela janela. Do outro lado da rua, a família vizinha decorava uma árvore de Natal gigantesca, e o som das gargalhadas chegava até aos seus ouvidos. Raul fechou as cortinas com um movimento brusco. Não queria lembrar.
Não queria pensar na época em que a sua casa foi cheia de vida, quando os corredores ecoavam com risos e conversas, quando os seus pais ainda viviam e Rafael, o seu irmão mais novo, corria pela casa. Isso foi antes do acidente, antes da briga terrível que destruiu tudo, antes de Rafael desaparecer da sua vida para sempre, deixando apenas palavras amargas e um vazio que Raul jurou nunca mais tentar preencher.
Raul havia aprendido que era melhor estar sozinho. As pessoas desiludiam, abandonavam e causavam dor. O dinheiro era confiável. Amanhã seria mais um dia igual aos outros: trabalho, números, decisões racionais, sem sentimentos, sem Natal. Era assim que Raul Vila Nova gostava que a sua vida fosse: vazia, mas segura.
Amanda Silva acordou às cinco da manhã. Há anos estava habituada a levantar-se antes do sol para dar conta de todos os trabalhos que precisava para sustentar a família. Olhou para a conta da eletricidade, que subia implacavelmente. O dinheiro, mesmo trabalhando em três casas diferentes, mal cobria as despesas básicas.
O seu telefone tocou. Era Cleide, da agência de limpeza. “Apareceu um serviço diferente. É para uma mansão no Jardim Europa. O pagamento é muito bom, Amanda. Três vezes mais do que ganhas noutros lugares.”
Amanda quase deixou cair a chávena. “Três vezes mais? Tem certeza?”
“Tenho, mas o patrão é meio difícil, sabes? Não gosta que falem com ele, não gosta que olhem para ele, não gosta de nada. A pessoa que trabalhou lá antes saiu a dizer que ele era impossível de aturar.”
Amanda pensou na conta da luz e nos presentes de Natal que não conseguiria comprar para os sobrinhos. “Eu aceito”, disse sem hesitar. “Preciso do dinheiro, Cleide. Quando é que começo? Hoje mesmo.”
Duas horas depois, Amanda estava em frente a uma mansão que parecia saída de uma revista. Foi recebida por Francisca, a governanta-chefe, que lhe explicou as regras: “Primeira regra: não fala com o Sr. Raul. Se ele entrar no ambiente onde você estiver a trabalhar, você baixa a cabeça e continua em silêncio. Segunda: não olhe diretamente para ele, nunca. Terceira e mais importante: não sorria. Não tente ser simpática. Ele odeia isso. Principalmente nesta época do ano. O Natal deixa-o ainda mais insuportável do que o normal.”
Amanda engoliu em seco. “Eu vou conseguir”, pensou, agarrando-se à ideia do bónus extra.
Quando ficou sozinha, começou a trabalhar. A casa era imensa, linda e, ao mesmo tempo, triste. Não havia fotos nas paredes, nenhum sinal de vida além do trabalho. Numa das vezes, Raul passou por ela sem dizer uma palavra. Amanda manteve os olhos fixos no chão, cumprindo o protocolo.
Na terceira semana, Amanda já tinha a sua rotina para evitar Raul. Mas, num certo dia, Francisca pediu-lhe para limpar a ala leste, os quartos que estavam fechados há anos. Quando abriu a primeira porta, teve de tossir devido à poeira. O quarto parecia ter sido decorado com carinho, diferente do resto da casa. Ao limpar atrás de uma cómoda antiga, ouviu algo a cair.
No chão, um porta-retrato de prata. Amanda apanhou-o e limpou o pó. Na imagem, quatro pessoas sorriam: um casal elegante e dois rapazes. Um deles era Raul, mas um Raul completamente diferente. Os seus olhos brilhavam de felicidade e ele sorria de uma forma tão genuína que parecia ser outra pessoa. Ao lado, um adolescente loiro e vibrante, Rafael, o seu irmão mais novo. A atmosfera da foto era de amor e cumplicidade. Era uma família feliz, cheia de vida.
“O que você está fazendo aqui?”, a voz de Raul surgiu atrás dela como um trovão.
Amanda virou-se rapidamente, ainda a segurar o porta-retrato. “Eu… eu estava a limpar e isto caiu de cima da cómoda.”
Raul aproximou-se lentamente, os olhos fixos na foto. Pegou-a das mãos dela, os dedos a tremer ligeiramente. “Ninguém entra aqui. Ninguém toca em nada.” Amanda viu nos olhos dele não a raiva de um patrão, mas uma dor profunda que o estava a corroer por dentro. O homem arrogante e frio havia desaparecido, deixando no seu lugar alguém completamente vulnerável.
“Sinto muito, Senhor Raul, eu não queria…”
“Saia”, disse ele, ainda olhando para a foto. “Saia e nunca mais entre neste quarto.”
Amanda dirigiu-se à porta, mas o instinto fê-la parar. Virou-se e disse, suavemente: “Eles pareciam ser uma família muito feliz.”
Raul levantou os olhos e encarou-a. Em vez de explodir, apenas sussurrou: “Eram.” O silêncio que se seguiu foi carregado de tristeza. Ele sentou-se na cama empoeirada, ainda segurando a foto. “Eles morreram há quinze anos, os meus pais, acidente de carro.” Amanda não sabia por que ele lhe estava a contar aquilo.
“E o rapaz mais novo da foto?”, perguntou Amanda, gentilmente.
Os olhos de Raul fecharam-se por um momento. “Rafael, o meu irmão. Ele também morreu. Para mim, pelo menos.”
Amanda percebeu a história de segredos e arrependimentos. Mas antes de sair, disse: “Se precisar de alguma coisa, Senhor Raul, eu estou aqui.”
Em casa, naquela noite, a imagem de Raul sozinho atormentava Amanda. A sua pequena casa, cheia de barulho e da presença dos sobrinhos, parecia ainda mais acolhedora em contraste com a mansão gelada. A sua sobrinha, Juliana, notou-a pensativa.
“Tia, como foi o trabalho na casa do rico?”
“Diferente”, respondeu Amanda. “Aquele homem tem uma vida muito triste. O dinheiro não compra a família.”
Enquanto tomava banho, alguém bateu à porta. Era Dona Odet, a vizinha de setenta anos, com uma expressão de cansaço profundo. “Amanda, eu não sei o que fazer. Aquele rapaz que me alugou o quartinho dos fundos… ele sumiu. Faz três semanas que não aparece e deixou duas crianças comigo.”
“Duas crianças? Como assim?”
“São as filhas dele, duas meninas gémeas, a Clara e a Lívia. Têm cinco anos. Ele disse que voltava antes do Natal para lhes comprar presentes.” Dona Odet estava desesperada. “Estou sem dinheiro para cuidar delas, Amanda. A minha reforma mal dá para mim. Onde é que está a mãe delas?”
“Ele disse que ela morreu no parto, por isso ele as criava sozinho. Amanda, eu preciso de ajuda. As meninas estão a passar necessidades e eu não aguento mais.”
Amanda e Juliana foram até à casa de Dona Odet. Duas meninas idênticas apareceram, com cabelos loiros claros e olhos azuis enormes. Havia uma tristeza nas suas expressões que partiu o coração de Amanda. “Você viu o nosso papá?”, sussurrou uma delas.
“Ele disse que voltava antes do Natal”, disse a outra, “para comprar presentes para nós.”
Mais tarde, Dona Odet mostrou a Amanda um papel. “Ele deixou isto aqui. É um endereço de alguém chamado Raul Vila Nova, no Jardim Europa.”
Amanda quase deixou o papel cair. “Raul Vila Nova? Eu? Eu trabalho na casa dele”, disse, em choque.
“Qual é o nome completo desse homem, Odet?”
“Vila Nova. Rafael Vila Nova. Porquê?”
Amanda sentou-se, sentindo a informação esmagadora: o rapaz jovem da foto, o irmão que Raul dissera ter morrido para ele, as duas garotinhas órfãs de mãe. Tudo se encaixava.
Dona Odet abriu um envelope lacrado encontrado no quarto, com a instrução: “Abrir somente se eu não voltar até 24 de dezembro.” Era dia 23. Dentro, uma carta de Rafael:
Dona Odet, se está a ler isto, significa que algo me aconteceu. Devo dinheiro a pessoas perigosas. Por favor, entregue Clara e Lívia ao único parente que elas têm. O meu irmão Raul Vila Nova mora no Jardim Europa. Nós zangámo-nos há muitos anos, mas ele é um bom homem no fundo. Sei que ele vai cuidar delas, mesmo depois de tudo o que aconteceu entre nós. Por favor, diga ao Raul que eu sinto muito por tudo, que eu sempre o amei como irmão, mesmo quando disse o contrário, e que espero que um dia ele possa perdoar as minhas palavras. Obrigado por tudo, Dona Odet. Rafael Vila Nova.
“Eu vou levá-las ao Raul”, disse Amanda, com determinação. “Ele pode ser difícil, mas estas são as sobrinhas dele. São a família dele, mesmo que ele não saiba. E o Rafael acredita que o irmão vai cuidar delas.”
Na manhã seguinte, Amanda chegou à mansão mais cedo que o normal. Precisava de falar com Raul. O seu coração batia descontrolado. Francisca estranhou. “Aconteceu alguma coisa? Você nunca chega a esta hora.”
“Preciso de falar com o Senhor Raul sobre uma coisa muito importante. É urgente. É sobre a família dele.”
Antes que Francisca pudesse protestar, Raul desceu a escada. Amanda respirou fundo, juntou toda a coragem e dirigiu-se à sala de jantar. Raul estava sentado, a ler o jornal. Ele levantou os olhos, claramente irritado.
“O que você está fazendo aqui? Francisca não lhe explicou que não deve incomodar-me?”
“Senhor Raul, por favor, eu preciso de falar com o senhor sobre algo muito importante. É sobre o seu irmão Rafael.”
A chávena de café parou no ar. “Eu já disse que não quero que ninguém mencione esse nome nesta casa.”
“Eu sei, senhor, mas o senhor precisa de saber. O Rafael tem duas filhas.”
A xícara estalou na mesa. “O que é que você disse?”
Amanda aproximou-se devagar. “O seu irmão, Rafael, tem duas filhas gémeas, Clara e Lívia. Elas têm cinco anos.”
“Isso é impossível!”, Raul levantou-se. “Como é que você sabe que é o meu irmão? Rafael é um nome comum.”
Amanda tirou do bolso a foto de Rafael com as meninas. As mãos de Raul tremeram ao pegar nela. Amanda viu o exato momento em que ele reconheceu o irmão. “Meu Deus!”, sussurrou Raul. “É ele? É realmente ele?”
“As meninas estão a passar necessidades, Senhor Raul. O Rafael desapareceu, deixando uma carta a dizer que devia dinheiro a pessoas perigosas. E na carta, ele pediu para lhe entregarem as meninas. Disse que o senhor é o único parente que elas têm.”
Raul sentou-se, com a cabeça entre as mãos, processando a informação. “Ele realmente disse isso, depois de tudo o que aconteceu?”
“Disse mais que isso, Senhor Raul. Ele pediu para eu dizer que sente muito por tudo, que sempre o amou como irmão, mesmo quando disse o contrário.”
Os olhos de Raul encheram-se de lágrimas, mas ele piscou rapidamente. “Onde é que estão as crianças agora?”
“Na casa da Dona Odet. Senhor Raul, eu sei que o senhor não me conhece, mas estas meninas precisam de ajuda. Elas são as suas sobrinhas.”
“Como é que elas são?”, perguntou Raul, sem se virar.
“Lindas. Têm os olhos azuis como os seus e o cabelo loiro claro. São bem-comportadas, mas estão assustadas. A mãe delas morreu no parto, e ele as criou sozinho.”
“Ele criou-as sozinho”, repetiu Raul.
“Sim. E pelo que Dona Odet conta, ele era um pai carinhoso. Talvez estas meninas sejam a oportunidade que Deus lhe está a dar para ter uma família de novo.”
“Eu não sei nada sobre cuidar de crianças. Não seria justo com elas.”
“Ninguém sabe, Senhor Raul. A gente aprende no dia a dia. Mas o mais importante é o amor. E eu sei que o Senhor tem amor para dar.”
“Quando é que eu posso conhecê-las?”
“Hoje à noite, se preferir. Hoje é véspera de Natal. Elas estão à espera do pai aparecer. Mas talvez seja a hora perfeita para conhecerem o tio que pode cuidar delas até o papá voltar.”
“Traga-as aqui hoje à noite. Quero conhecer as minhas sobrinhas.”
Raul passou o resto do dia no shopping a comprar tudo o que meninas de cinco anos pudessem querer, bonecas, livros, doces e roupas. Às sete da noite, a campainha tocou.
Amanda entrou na sala, acompanhada de Dona Odet e das duas menininhas que se escondiam. Raul levantou-se devagar. As gémeas eram exatamente como Amanda as descrevera. “Oi”, sussurrou Clara.
“Oi”, respondeu Raul, ajoelhando-se. “Vocês são a Clara e a Lívia?”
“Você conhece o nosso papá?”, perguntou Clara.
“Conheço, sim. Ele é o meu irmão mais novo.”
“Ele está consigo?”
Raul sentiu o coração partir. “Não, querida, mas eu tenho certeza de que ele está a pensar em vocês.”
Dona Odet entregou-lhe a mochila pequena com os pertences. “Cuide bem delas, são meninas especiais.”
“Vou cuidar”, prometeu Raul.
“O tio Raul vai cuidar de vocês enquanto o papá não volta”, disse Amanda.
“Vocês vão morar aqui comigo”, disse Raul, surpreendendo-se.
As meninas olharam para a sala luxuosa, de olhos esbugalhados. “É muito grande”, comentou Clara.
“É sim, mas pode ficar menor com vocês aqui”, disse Raul.
Francisca apareceu com chocolate quente. “Tio Raul”, disse Clara. “Cadê a árvore de Natal?”
“Eu não tenho árvore de Natal.”
“Porquê? O papá sempre faz uma árvore para nós, mesmo quando não tem dinheiro, ele faz uma árvore com galhos que acha na rua.”
“Está bem, vamos fazer uma árvore”, concordou Raul.
Usaram a planta seca da sala de jantar e decoraram-na com fitas de presente antigas. As meninas fizeram estrelas e corações de papel. “Agora precisa de uma estrela no topo”, disse Lívia. Clara tirou da mochila um pequeno embrulho: uma estrela feita de cartão dourado. “A gente fez para o papá, mas a Dona Odet disse que podíamos dar para você.”
Raul pegou na estrela, os olhos marejados, e levantou Clara para que ela a pusesse no topo. “Agora é uma árvore de Natal de verdade”, disse Clara.
Raul olhou para a criação deles. Era assimétrica e estranha, mas fazia o seu peito apertar de uma forma boa. “É sim”, concordou. “É a nossa árvore de Natal.”
Quando Dona Odet foi embora, Raul ficou sozinho com Clara e Lívia. “Tio Raul, você pode nos contar uma história?”
Raul lembrou-se do irmão. “Querem que eu conte sobre quando o papá de vocês era pequeno como vocês?” Os olhos das duas brilharam.
Pela primeira vez em quinze anos, Raul falou sobre Rafael sem sentir raiva. Contou sobre as travessuras e como o irmão era corajoso. Quando as meninas adormeceram, Raul carregou-as para o quarto de hóspedes. Eram as suas sobrinhas, família de verdade. Pela primeira vez, não se sentia sozinho.
Raul acordou na manhã de Natal com risadas de crianças. Desceu as escadas e encontrou Clara e Lívia na cozinha, a fazer bolo com Francisca. “Tio Raul, a gente está a fazer o bolo favorito do papá!”
“Você vai comer connosco?”, perguntou Lívia.
Raul nunca tomava pequeno-almoço, mas havia algo na expectativa delas que o fez concordar. “Claro.”
Depois, na sala, Lívia disse: “Presentes em baixo da árvore? O papá sempre faz presentes para nós.”
“A gente pode fazer presentes para você, tio Raul”, disse Clara.
Enquanto elas desenhavam, Raul ligou para Margarete. “Margarete, amanhã de manhã, quero que compre tudo o que meninas de cinco anos podem querer. Roupas, brinquedos, livros, tudo.”
“Senhor Raul, posso perguntar porquê?”
“Eu tenho duas sobrinhas, Margarete, e elas vão morar comigo.”
As meninas trouxeram os seus presentes: desenhos coloridos. Um mostrava três figuras de palitos: “Tio Raul, Clara e Lívia, família nova”.
Raul sentiu as lágrimas nos olhos. “São os presentes mais bonitos que eu já ganhei.”
“Tio Raul, você está triste?”, perguntou Lívia.
“Não, querida, estou feliz. Muito feliz.” As meninas aconchegaram-se contra ele. “Tio Raul, você acha que o papá sabe que estamos aqui?”
“Acho que sim. E ele está muito feliz, sabendo que vocês estão seguras e cuidadas. Vocês vão ficar aqui comigo.”
“Para sempre?”, perguntou Lívia.
Raul olhou para as duas menininhas que haviam mudado tudo. “Se vocês quiserem, para sempre.”
Pela primeira vez em quinze anos, Raul Vila Nova estava a ter um Natal feliz.
Três semanas depois, a mansão estava irreconhecível, cheia de vida. Amanda, oficialmente a faxineira, tornara-se muito mais: a pessoa que trazia equilíbrio e calor. “Senhor Raul, o senhor está diferente, mais relaxado, mais feliz.”
“É estranho, Amanda. Construí uma vida baseada no controlo, e agora, agora tudo é caos, barulho, e eu nunca me senti tão bem.”
“É isso que uma família faz com a gente. Desarruma a nossa vida organizada, mas preenche todos os espaços vazios.”
O telemóvel de Raul tocou. “Alô?” Uma voz que ele não ouvia há quinze anos disse: “Raul, é o Rafael.”
“Onde você está?”, interrompeu Raul.
“Estou seguro agora. As tuas filhas estão aqui, Rafael. Clara e Lívia estão comigo.”
O choro de Rafael veio do outro lado da linha. “Você está a cuidar delas?”
“Estou. Elas são incríveis. Elas se parecem contigo quando eras criança. Houve um silêncio longo, carregado de mágoa.
“Eu sinto muito por tudo, pelas coisas horríveis que eu disse, por ter saído, por ter deixado você sozinho. Eu era muito assustado.”
“Eu também sinto muito, mano. Fui muito duro contigo. Você me perdoa?”
“Já perdoei há muito tempo, Rafael. Só não sabia como te encontrar.”
“E eu não sabia como voltar.”
“Rafael, queres falar com as tuas filhas?”
As meninas desceram a correr. “Papai!”, gritaram. Contaram tudo o que havia acontecido.
Quando devolveram o telefone a Raul, Rafael estava a chorar. “Quando é que podes vir aqui?”
“Hoje, agora.”
“Venha para casa. Para casa.”
Raul olhou para Amanda, os olhos marejados. “Ele está a vir. Sinto-me completo. Pela primeira vez em quinze anos, sinto-me completo.”
“Nossa família”, corrigiu Raul, olhando para ela de uma forma diferente. “Você também faz parte disto, Amanda. Você trouxe as meninas para mim.”
Um ano depois, a mansão estava cheia de vida para a véspera de Natal. Rafael tinha voltado para a casa, tornara-se sócio de Raul, e reconstruíram a sua relação. Raul estava na cozinha com Amanda, a preparar o peru. “Quantas vezes eu preciso de pedir para você me chamar apenas de Raul?”
“Força do hábito”, riu Amanda.
A relação evoluíra. Amanda tornara-se a pessoa que trazia calor e equilíbrio. Raul estava apaixonado.
A mesa estava posta para seis: Raul, Rafael, Amanda, Clara, Lívia e Dona Odet, a avó adotiva. Era a primeira ceia de Natal em quinze anos.
“Podemos fazer uma oração?”, perguntou Clara.
Rafael olhou à sua volta. “Obrigado, Deus, por esta família. Obrigado por me dares uma segunda oportunidade com o meu irmão. E obrigado por trazeres a Amanda para as nossas vidas.”
“Lembram-se da nossa primeira árvore de Natal?”, perguntou Lívia.
“Aquela árvore mudou tudo”, disse Amanda. “Foi quando esta casa deixou de ser apenas uma casa e virou um lar.”
“Você está-me a considerar como uma mãe?”, perguntou Amanda, emocionada, ao ver o desenho das meninas.
“Claro”, disse Lívia. “Você cuida da gente, faz comida, dá ralhetes. É igual a uma mãe de verdade.”
Raul aproximou-se de Amanda. “Acho que está na hora de tornar isto oficial”, disse ele, beijando-a suavemente, e tirou um anel de noivado. “Amanda Silva, você quer casar comigo e oficializar esta família maluca que construímos juntos?”
“Sim!”, gritou Amanda.
Mais tarde, na varanda, Raul e Amanda observavam as luzes de São Paulo. “O que mudou tudo foi você ter coragem de me contar sobre as meninas”, disse Raul. “Você poderia ter ignorado.”
“Não conseguiria. Quando vi aquela foto e entendi a conexão, soube que tinha de fazer alguma coisa.”
“Nós salvamo-nos uns aos outros”, disse Raul. “As meninas ensinaram-me a amar de novo. Você ensinou-me que não preciso de carregar tudo sozinho.”
Clara apareceu no topo da escada. “Não consigo dormir. Posso ficar convosco mais um bocadinho?”
Logo todos estavam reunidos no sofá. “Papai”, sussurrou Clara. “Este foi o melhor Natal da minha vida.”
Raul olhou para a sua família, construída com amor e segundas oportunidades. Soube que jamais passaria outro Natal sozinho. A mansão no Jardim Europa não era mais uma casa vazia; era um lar cheio de amor. E tudo havia começado com duas menininhas perdidas, uma faxineira corajosa e um homem que pensava ter esquecido como amar.