Quando a porta do elevador se abriu no térrio do Hospital Geral do Insus e viuvir a parada ali dentro sorrindo para mim com aquele sorriso cansado, mais gentil que ela sempre tinha. Minha primeira reação foi alegria genuína, porque fazia 15 dias que eu não via nenhum dos meus pacientes de hemodiálise e ela era uma das mais queridas.
72 anos, viúva, diabética em estágio avançado, três sessões por semana há quase do anos. sempre chegava meia hora antes do horário e trazia balas de coco pros enfermeiros. “Eu vira, que bom te ver. Como você tá?” Ela deu aquele sorriso fraco, a pele com aquela palidez característica de quem tem insuficiência renal crônica e respondeu com voz suave: “Oi, doutora Beatriz.
Estou indo devagar, sabe como é? Vim só dar um pulinho aqui embaixo, cumprimentar umas pessoas e já já subo pro tratamento. Segurei a porta do elevador para não fechar enquanto ela saía e algo em mim notou, uma fração de segundo de estranheza que meu cérebro não processou completamente na hora que ela estava usando o mesmo vestido florido azul que usava sempre, mas parecia diferente, mais leve, como se tivesse emagrecido demais mesmo pro padrão dela. Não demore, tá? Te esperamos lá em cima.
Sua máquina já deve estar preparada. Ela acenou, saiu do elevador e eu entrei. A porta fechou, subi pro quinto andar e quando cheguei na ala de hemodiálise, minha vida virou de cabeça para baixo. Entrei na sala de tratamento, onde ficavam as 12 máquinas de diálise enfileiradas, esperando ver os pacientes já conectados, como sempre acontecia no turno da tarde.
Mas em vez do barulho mecânico habitual das máquinas funcionando e conversas baixas entre pacientes e enfermeiros, encontrei um silêncio pesado. Todos os seis pacientes que já estavam conectados, as três enfermeiras, até a Dra. Fernanda, que era nefrologista chefe, estavam de cabeça baixa, alguns segurando terços, outros com as mãos cruzadas no peito. E a enfermeira Graciela lia, em voz baixa de um papel, o que reconheci ser uma oração de encerramento.
Me aproximei devagar, confusa, e sussurrei paraa Lucia, enfermeira que trabalhava comigo há anos. O que tá acontecendo? Por que todo mundo tá rezando? Lucia virou para mim com olhos vermelhos e inchados. claramente tinha chorado recente e respondeu em voz baixa, mais firme. É o último dia do novenário da Elvira, Bia.
Ela faleceu há nove dias. Hoje fecha a novena que as filhas dela pediram pra gente fazer aqui, já que ela passava mais tempo com a gente do que em casa. Senti como se o chão tivesse sumido debaixo dos meus pés. Minha respiração travou, meu coração disparou e sussurrei trêmula: “Não é possível! Eu acabei de ver ela agora, há literalmente 5 minutos no elevador, conversamos.
Ela disse que ia cumprimentar a gente e subia pro tratamento. Lucia me olhou como se eu tivesse enlouquecido, deu dois passos para trás instintivamente e falou num tom entre assustado e irritado. Beatriz, isso não tem graça. A gente tá fazendo uma homenagem séria aqui. Não é hora de brincadeira de mau gosto.
Mas eu não estava brincando. Minha voz saiu mais alta que pretendia, quase desesperada. Eu não tô brincando. Eu vi ela no elevador. Ela tava usando o vestido azul florido, aquele que ela sempre usa. Me cumprimentou. Perguntei se ela ia subir pro tratamento. Ela disse que sim. A doutora Fernanda interrompeu a oração e veio até mim com expressão severa.
Beatriz, você voltou de férias hoje? Talvez ainda esteja cansada da viagem. talvez tenha visto alguém parecido e confundido, mas eu a interrompi, mãos tremendo. Doutora, eu trabalho aqui há 4 anos, conheço cada paciente, sei o nome, a história, a doença de cada um. Eu sei quem é Vira e eu a vi claramente. Falei com ela.
Como ela pode estar morta há nove dias se eu acabei de conversar com ela? O silêncio que se seguiu foi tão denso que consegui ouvir o zumbido elétrico das máquinas de diálise desligadas. Os pacientes me olhavam com misto de curiosidade mórbida e medo. E seu Ramon, paciente de 60 anos, que fazia diálise na máquina 3 há meses, disse algo que fez todo mundo congelar. Dout. Beatriz não tá mentindo.
A Elvira continua aqui. Eu vejo ela às vezes sentada na cadeira onde ela sempre sentava, olhando pra gente, só que ninguém acredita quando eu falo. A sala explodiu em sussurros. Alguns pacientes se benzendo, enfermeiras se entreolhando assustadas e eu senti minhas pernas bambas. Sentei numa cradeira antes de cair, respirando fundo, tentando controlar taquicardia.
E foi quando percebi algo que me fez gelar. A cadeira onde sentei estava gelada. Não gelada de ar condicionado, gelada de uma forma antinatural, como se alguém tivesse colocado gelo embaixo. E o frio subia pelas minhas costas até a nuca. Levantei de um pulo e Lucia perguntou: “O que foi?” Apontei pra cadeira. “Senta aí, me diz se você sente algo estranho.

” Ela, cética mais curiosa, sentou. Tr segundos depois, levantou igual eu tinha levantado, olhos arregalados. “Tá gelado. Essa cadeira tá gelada, mas não faz sentido. As outras cadeiras estão normais e o ar condicionado nem tá ligado ainda.” A Dra. Fernanda, tentando manter controle da situação com racionalidade médica, disse firme: “Alguém deve ter deixado uma compressa fria aí antes. Vamos voltar ao trabalho.
Beatriz vai lavar o rosto, tomar um café e quando estiver mais calma volta. Lucia, prepara os pacientes das 3 horas.” Mas enquanto todo mundo se mexia tentando retomar a rotina, eu sabia sabia no fundo da alma que tinha acabado de conversar com uma norta e que o hospital geral do IMS, onde eu trabalhava há anos, guardava segredos que a medicina não conseguiria explicar.
Fui pro banheiro das funcionárias, tranquei a porta, me apolhei na pia e olhei meu reflexo no espelho, tentando me convencer que tinha imaginado tudo: cansaço das férias, confusão mental, alguém parecido com eu vira que eu interpretei errado. Mas quanto mais eu tentava racionalizar, mais nítida a memória ficava.
O sorriso dela, a voz rouca característica, o vestido azul com flores pequenas, até o jeito que ela inclinava a cabeça quando falava. Cada detalhe era preciso demais para ser alucinação. Joguei água fria no rosto, respirei fundo 10 vezes, como aprendi em cursinho de controle de ansiedade. E quando levantei o olhar pro espelho de novo, quase gritei: tinha alguém atrás de mim.
Uma sombra, uma cileta feminina baixinha que sumiu no mesmo segundo que virei para olhar diretamente. Meu coração quase saiu pela boca. Saí correndo daquele banheiro, voltei pro corredor respirando rápido e esbarrei no Dr. Héctor Salinas, ortopedista que trabalhava no mesmo andar, conhecido por ser totalmente cético em relação a qualquer coisa sobrenatural.
Ele segurou meu braço. Calma, Beatriz. O que houve? E talvez por desespero, talvez por precisar falar com alguém que não achasse que eu estava louca, contei tudo de uma vez. O elevador, a Elvira, a cadeira gelada, a sombra no banheiro. Esperava que ele rrisse, fizesse piada, me chamasse de supersticiosa, mas ele não fez nada disso.
Apenas ficou sério, me puxou para um canto do corredor, longe de ouvidos alheios, e disse algo que mudou tudo. Beatriz, esse hospital tem mais de 50 anos. Morreram milhares de pessoas aqui. E eu também já vi coisas, coisas que não conto pros colegas para não virarem piada. Mas você não tá louca e não tá sozinha. Naquela noite, quando meu turno finalmente acabou às 10 da noite e desci de elevador, o mesmo elevador onde tinha visto eu vir h 7 horas antes, fiquei olhando fixamente pro canto onde ela tinha estado, tentando encontrar alguma
explicação racional que meu cérebro de médica treinada em ciência pudesse aceitar, mas não encontrei. E quando a porta se abriu no térrio e saí, olhei para trás uma última vez e juro, juro pela minha formação, pela minha sanidade, que vi o reflexo dela no espelho do fundo do elevador, olhando para mim com aquele sorriso cansado, mas gentil. A porta fechou antes que eu pudesse ter certeza.
Dirigi para casa no piloto automático, entrei, abracei na marido, que perguntou como foi o primeiro dia de volta e tudo que consegui responder foi: “Precisamos conversar. Você tem que me ouvir até o final sem me interromper. Contei tudo, cada detalhe e quando terminei esperando ceticismo ou preocupação com minha saúde mental, ele apenas ficou em silêncio por longos segundos, depois pegou minha mão e disse algo que me fez perceber a gravidade da situação. Bia, minha avó era médium.
Ela dizia que quando um espírito aparece para alguém específico, principalmente logo após a morte, é porque precisa dessa pessoa para alguma coisa. Algo ficou pendente, algo que só você pode resolver e enquanto você não descobriu que ela vai continuar apecendo. No dia seguinte, cheguei ao hospital 2 horas mais cedo, antes do turno oficial começar, porque não consegui dormir direito a noite inteira pensando no que meu marido tinha dito sobre espíritos com pendências. E a primeira coisa que fiz foi ir direto pra sala de hemodiálise, ainda vazia,
silenciosa, com as máquinas desligadas esperando o dia começar, e caminhei até a cadeira número sete, a cadeira da Elvira, onde ela sentava três vezes por semana há quase do anos. Ao lado de cada cadeira havia um pequeno armário de metal, onde os pacientes guardavam pertences pessoais durante as sessões.
Controle remoto da TV individual, fones de ouvido, às vezes um livro, lenços, balas. abriu o armário da Elvira com as mãos tremendo, esperando encontrá-lo vazio, já que ela tinha falecido há nove dias e provavelmente a família tinha levado tudo. Mas, para minha surpresa, ainda tinha coisas lá.
Um novelo de lã rosa com agulha de crochê enfiada. Ela fazia crochê durante as sessões, um pacote de balas de hortelã pela metade, fones de ouvido baratos daqueles de camelô e, no fundo, embaixo de tudo, um envelope amarelado dobrado ao meio. Peguei o envelope com cuidado, virei ele e senti meu estômago revirar quando li o que estava escrito na frente em letra trêmula, mais legível. Para quem encontrar, urgente, por favor, leiam.
Meus dedos tremiam tanto que quase rasguei o papel ao abrir. Tirei uma folha de caderno dobrada e comecei a ler uma carta escrita à mão datada do dia da morte dela. A carta dizia: “Meu nome é Elvira Mendoza. Se alguém está lendo isso, é porque eu já morri. Estou escrevendo hoje, 3 de outubro, porque sinto que meu corpo não aguenta mais. Estou cansada.
Meus rins pararam quase completamente. Meu coração está fraco e os médicos não sabem, mas eu sei quando a morte está chegando perto, porque sinto ela me chamando. Não tenho medo de morrer. Tenho medo de ir embora sem resolver uma coisa. Minha filha mais nova, Gabriela, não sabe que é adotada.
Eu e meu falecido marido adotamos ela quando tinha três meses, mas nunca contamos porque tínhamos medo de perder o amor dela. Agora que estou morrendo, percebo que foi erro. guardar esse segredo. Ela precisa saber a verdade. Precisa saber que sua mãe biológica se chamava Rosa Delgado. Morreu de overdose quando Gabriela era bebê e que eu a criei como se fosse minha própria carne.
Na minha casa, na rua Hidalgo 847, apartamento 12, tem uma caixa de sapatos debaixo da minha cama com certidão de nascimento original da Gabriela, fotos da mãe biológica e uma carta que Rosa escreveu pra filha antes de morrer, pedindo que eu entregasse quando ela crescesse. Mas eu nunca tive coragem. E agora vai ser tarde.
Por favor, se alguém ler isso, por favor, encontre minha filha Gabriela Menda, e entregue essa caixa para ela. Ela merece saber de onde veio. Merece conhecer a verdade. Não deixem eu morrer carregando esse peso, por favor. A carta terminava com um telefone rabiscado e a assinatura trêmula de Euvira.
Segurei o papel com as duas mãos, lágrimas escorrendo pelo meu rosto, sem eu conseguir controlar, e entendi finalmente. Ela tinha aparecido para mim porque precisava que eu cumprisse essa missão que ela não conseguiu cumprir em vida. Passei o resto do turno no piloto automático, atendendo pacientes mecanicamente enquanto minha cabeça girava em torno daquela carta.
E quando o expediente terminou às 6 da tarde, em vez de ir para casa, fui direto pro endereço que eu vira tinha escrito, rua Hidalgo, 847, um prédio velho de quatro andales em bairro popular, pintura descascada, escada de cimento com corrimão enferrujado. Subi até o apartamento 12, respirei fundo três vezes para juntar coragem e toquei a campainha. Uma mulher de uns 40 e poucos anos abriu a porta, olhos ainda inchados de choro recente, vestindo roupa preta de luto. E quando me viu de jaleco do hospital, tinha esquecido de tirar, ficou alerta.
Sim, posso ajudar? Engoli seco. Você é Gabriela Menda, filha da dona Elvira? Ela sentiu desconfiada. Sou. Por quê? Aconteceu alguma coisa com Espera. Vocês são do hospital onde minha mãe fazia tratamento? Confirmei. E antes que ela pudesse perguntar mais nada, soltei. Preciso falar com você sobre sua mãe. É importante, muito importante.
Posso entrar? Gabriela hesitou, olhou para trás como se checando se tinha alguém em casa, e então deu espaço. Entre, mas seja rápida. Tenho que terminar de organizar as coisas da minha mãe para doaç. Entrei num apartamento pequeno, dois quartos, sala e cozinha integradas, móveis velhos, mas bem cuidados, cheiro de incenso misturado com mofo de prédio antigo e várias caixas de papelão empilhadas com roupas e objetos para doar. Gabriela me ofereceu café, que aceitei só para ganhar tempo.
Sentamos no sofá gasto e eu não sabia como começar sem soar completamente louca. Decidi ir direto ao ponto. Gabriela, eu encontrei uma carta que sua mãe escreveu no dia que ela morreu. Ela deixou escondida no armário dela na sala de hemoviálise. E nessa carta, respirei fundo, ela revela um segredo que guardou a vida inteira sobre você.
Gabriela franziu a testa, corpo ficando tenso. Que tipo de segredo? Tirei a carta dobrada do bolso do jaleco, estendi para ela. É melhor você ler. Ela pegou o papel com mãos trêmulas, começou a ler e eu vi exatamente o momento em que chegou na parte da adoção, porque o rosto dela ficou branco, a respiração acelerou e ela sussurrou: “Não, isso não pode ser verdade. Eu não sou adotada.
Eu me pareço com ela. Todo mundo diz que eu tenho os olhos dela. Mas continuou lendo e quando terminou, as lágrimas já escorriam livremente enquanto ela balançava a cabeça em negação. Por que ela nunca me contou? Por que guardar isso por 43 anos? Eu tinha direito de saber. A raiva na voz dela era palpável, misturada com dor e confusão.
E eu disse gentilmente, ela explica na carta. Ela tinha medo de perder você. amava você demais para arriscar, mas antes de morrer, ela percebeu o erro e quis consertar. Por isso escreveu isso. Por isso pediu para alguém entregar. Gabriela limpou as lágrimas com as costas da mão e a caixa. Ela fala de uma caixa debaixo da cama com documentos e fotos. levantou de um pulo, foi pro quarto e eu a segui.
Ela ajoelhou, enfiou a mão debaixo da cama de casal arrumada com colxa florida e puxou uma caixa de sapatos empoeirada amarrada com barbante. Sentamos as duas no chão do quarto e Gabriela abriu a caixa com mãos tremendo tanto que eu tive que ajudar a desamarrar o barbante.
Lá dentro, certidão de nascimento original com o nome Gabriela Delgado, mãe Rosa Delgado, pai desconhecido. Três fotos desbotadas de uma mulher jovem, muito jovem, talvez 17 anos segurando um bebê. E era impossível negar a semelhança. Gabriela tinha os mesmos olhos, o mesmo formato de rosto e, no fundo, um envelope lacrado amarelado pelo tempo, com para minha filha Gabriela escrito na frente.
Gabriela pegou o envelope, abriu com cuidado quase reverencial, tirou uma carta de duas páginas escritas com letra infantil, cheia de erros de ortografia, e começou a ler em voz alta, a voz quebrando. Minha filha, meu nome é Rosa, tenho 17 anos, sou sua mãe biológica e vou morrer em breve porque sou viciada em drogas e meu corpo não aguenta mais.
Eu te amo mais que tudo, mas não consigo cuidar de você. A dona Elvira é uma mulher boa. Ela prometeu te criar como filha dela e eu tô te dando para ela porque quero que você tenha a vida melhor que eu tive. Não me odeie. Eu fiz o melhor que pude. Um dia você vai entender. Te amo, sua mãe rosa.
Gabriela soluçou, abraçou a carta contra o peito e ficamos ali sentadas no chão daquele quarto por tempo indeterminado, processando tudo, até que ela finalmente disse algo que me fez perceber a magnitude do que tinha acontecido. Eu passei a vida inteira achando que minha mãe tinha morrido sem me dizer algo importante.
E agora descubro que ela passou a vida dela inteira guardando o segredo mais importante de todos. E a única razão de eu saber agora é porque você, uma estranha, encontrou essa carta por acaso. Ou será que não foi acaso? Me levantei do chão, ajudei Gabriela a levantar também e disse algo que até hoje não sei se deveria ter dito, mas saiu naturalmente. Gabriela, tem uma coisa que eu não te contei.
Ontem, quando voltei das férias, eu vi sua mãe no elevador do hospital. Conversamos, ela disse que ia subir pro tratamento e quando cheguei na hemodiálise, descobri que ela tinha morrido há nove dias. Eu conversei com o espírito dela sem saber que ela estava morta.
Gabriela me olhou com uma mistura de choque e algo que parecia alívio. “Você viu ela depois de morta?”, confirmei com a cabeça e ela começou a chorar de novo, mas dessa vez era choro diferente, mas leve. “Então ela realmente está em algum lugar? Ela não simplesmente acabou e ela te mandou aqui. Ela te escolheu para me entregar isso porque sabia que você faria”.
Segurei as mãos dela. Ela te amava. amava tanto que guardou esse segredo com medo de te perder. E amava tanto que mesmo depois de morta, encontrou um jeito de consertar o erro. Porque amor de mãe não acaba com a morte. Ele continua, atravessa mundos e encontra formas de cumprir o que precisa ser cumprido.
Gabriela me abraçou e ficamos ali abraçadas por longos minutos, duas estranhas conectadas por uma mulher morta que se recusou a partir em paz sem resolver o que tinha que resolver. E quando saí daquele apartamento, uma hora depois, olhei pro céu já escuro de Guadalajara e sussurrei: “Eu vira, eu cumpri sua missão. Pode descansar agora”.
Três dias depois, no meu turno da tarde, eu estava preparando a máquina número cinco para receber seu Ramon, quando senti aquele frio característico subir pela minha nuca, o mesmo frio que tinha sentido na cadeira da Elvira. E quando virei para olhar a cadeira número sete, ela estava lá. Não era sombra, dessa vez não era reflexo em espelho.
Era ela mesma, sólida, nítida, sentada na cadeira onde sempre sentava, usando o vestido azul florido, as mãos cruzadas no colo, me olhando com aquele sorriso cansado, mas agora tinha algo diferente, paz. Congelei com a mão, ainda segurando o equipo de soro. Meu coração disparou, mas dessa vez não era medo, era reconhecimento.
Seu Ramon, que estava sendo conectado à máquina, seguiu meu olhar e sussurrou: “Você tá vendo ela também, né, a dona Euvira? Ela tá ali, mas hoje tá diferente, tá brilhando.” E tinha razão. Ela estava emanando uma luz suave, dourada, que não vinha de fonte externa, mas dela mesma. E enquanto eu ficava paralisada, sem saber o que fazer, ela levantou a mão lentamente e acenou para mim.
Depois colocou a mão sobre o coração em gesto universal de gratidão e moveu os lábios sem som, mas eu consegui ler perfeitamente. Obrigada. Lágrimas começaram a escorrer pelo meu rosto e quando pisquei para limpá-las, ela tinha sumido. Mas o calor permaneceu. A cadeira, que sempre ficava gelada, estava morna agora, confortável.
E o peso sufocante que a sala de hemodiálise carregava desde a morte dela finalmente tinha se dissipado. Lucia, que estava do outro lado da sala preparando medicação, veio até mim preocupada. Bia, você tá chorando? O que aconteceu? Limpei o rosto rapidamente, tentando me recompor. Nada, é só acho que a Elvira finalmente descansou. Acho que ela conseguiu partir.
Lucia me olhou sem entender completamente, mas com aquela compaixão de quem trabalha há anos com morte e sabe que às vezes as coisas não têm explicação racional. Você entregou aquela carta pra filha dela? Confirmei e ela apertou meu ombro. Então você fez o que ela precisava e agora ela tá em paz. Isso é tudo que importa.
Seu Ramon, já conectado à máquina com sangue circulando pelo filtro externo, disse algo que fez toda a equipe presente parar para ouvir. Sabe, doutora, eu tô aqui há seis meses fazendo diálise três vezes por semana. Vi cinco pessoas morrerem nesse período e a dona Elvira foi a única que ficou.
Eu via ela sentada naquela cadeira toda semana olhando pra gente com aquela cara de quem tá esperando algo. E hoje, pela primeira vez, ela não tá mais ali. Sumiu de verdade, porque você resolveu o que ela precisava resolver. A gente que tá vivo às vezes esquece que os mortos também têm pendências e que precisam de ajuda para seguir em frente. Suas palavras euaram na sala em silêncio e percebi que todos ali, pacientes e equipe médica, tinham sido tocados de alguma forma por aquela experiência, mesmo os que não tinham visto nada, mas sentiram a mudança de energia no ambiente. No final daquele turno, quando estava trocando de roupa no vestiário
das funcionárias, o Dr. Hctor Salinas, o ortopedista cético, que tinha me dito que também via coisas, apareceu na porta e pediu para conversar. Fomos até o terraço do hospital, aquele lugar onde funcionários iam fumar ou apenas respirar fresco entre cirurgias. E ele acendeu um cigarro, olhando pra cidade de Guadalajara, iluminada abaixo de nós.
Beatriz, eu te devo uma explicação. Quando você me contou sobre a Elvira, eu disse que também tinha visto coisas aqui. E a verdade, esse hospital, ele deu uma tragada longa. Esse hospital é cheio de espíritos. Tem pacientes que morreram e não sabem que morreram. Tem enfermeiros e médicos antigos que continuam fazendo ronda como se ainda trabalhassem aqui.
Tem crianças que faleceram na pediatria e brincam nos corredores de madrugada. Eu vejo, sempre vi, desde que comecei a trabalhar aqui há 15 anos. Mas nunca falei com ninguém porque porque médico que vê fantasma vira piada, vira alvo de afastamento psiquiátrico, vira carreira arruinada. Olhei para ele com compreensão nova.
E por que tá me contando isso agora? Ele jogou a ponta do cigarro no chão, pisou para apagar. Porque você provou algo que eu sempre soube, mas tinha medo de aceitar, que eles não estão aqui por maldade ou para assustar. Estão presos, precisam de ajuda. E às vezes a gente, os vivos, somos a única ponte que eles têm para conseguir seguir adiante.
Héctor então me contou algo que mudou completamente minha percepção sobre o hospital. Há trs anos, ele tinha operado uma menina de 8 anos, cirurgia de correção de fratura exposta na perna. Procedimento simples, mas ela teve reação anafilática à anestesia e morreu na mesa cirúrgica. Durante meses depois disso, ele via a menina andando pelos corredores do quinto andar, sempre no mesmo horário, 3 da manhã, usando aquela roupa hospitalar azul clara de paciente, arrastando uma perna como se ainda estivesse machucada, chorando baixinho, procurando alguém. Eu tentava ignorar Beatriz, tentava me convencer que era culpa, que era a minha consciência me
punindo pela morte dela, mas ela aparecia toda a noite que eu fazia plantão. Até que uma vez tomei coragem e falei com ela. Perguntei o que ela queria. E sabe o que ela disse? Sua voz falhou. disse que queria que eu avisasse a mãe dela que não doía mais, que a perna tinha parado de doer, que ela estava bem, porque antes de morrer, a última coisa que ela tinha dito pra mãe foi: “Mãe, tá doendo muito”.
E ela ficou presa nesse loop de dor, nessa última memória, sem conseguir partir. Ele limpou os olhos com as costas da mão. Eu fui até a casa da mãe dela, toquei a campainha, ela abriu a porta, me reconheceu e, antes que eu pudesse falar qualquer coisa, ela desabou, chorando nos meus braços, dizendo que não conseguia perdoar a si mesma por ter deixado a filha ir pra cirurgia sentindo dor.
E eu disse a ela exatamente o que a menina tinha me pedido para dizer, que não doía mais, que ela estava em paz. E a mãe, a mãe parou de chorar, respirou fundo e disse que ia conseguir seguir em frente agora. Naquela noite, a menina nunca mais apareceu nos corredores. Ficamos em silêncio por longos minutos, eu e Héctor, dois profissionais de saúde treinados para acreditar apenas no que pode ser medido, testado, provado, mas que tinham sido forçados pela realidade a aceitar que existe uma camada invisível da existência, onde os mortos e os vivos se cruzam, onde amor e dor transcendem a morte física, onde
pendências terrenas prendem almas que deveriam estar livres. Beatrice, Héctor finalmente disse: “Você tem um dom. Não sei se nasceu com ele ou se desenvolveu trabalhando tanto tempo com pacientes terminais, mas você tem a capacidade de ver, de ouvir, de ajudar. Não desperdice isso.
Não tenha medo disso, porque tem muita gente presa entre os mundos esperando alguém com coragem suficiente para estender a mão e mostrar o caminho da luz.” Assenti, ainda processando tudo, e ele colocou a mão no meu ombro. E se você vê mais espíritos por aqui e vai ver, porque esse hospital tá cheio, me procura. A gente trabalha junto, porque médico cuida de corpo.
Mas às vezes a gente precisa cuidar de alma também, mesmo que a alma já não tenha mais corpo. Descemos do terraço juntos e quando me despedi dele no estacionamento, olhei para trás, pro edifício iluminado do Hospital Geral do Insis. E pela primeira vez desde que comecei a trabalhar ali, vi, realmente vi, havia pessoas nas janelas que não eram pacientes, sombras nos corredores que não tinham corpo.
E entendi que meu trabalho ali tinha acabado de se expandir de uma forma que a faculdade de medicina nunca tinha me preparado. Duas semanas depois, recebi uma ligação de Gabriela. Ela tinha ido ao cartório, regularizado a documentação com a certidão de nascimento original, tinha oficialmente assumido o sobrenome Delgado junto com o Mendoça e estava organizando um pequeno memorial paraa Rosa, a mãe biológica que morreu aos 17 sem ver a filha crescer, mas que tinha feito a coisa mais corajosa que uma mãe pode fazer, abrir mão da filha para dar a ela uma vida melhor.
Beatriz, eu queria te convidar pro Memorial. Você foi à ponte. Você trouxe as duas mães de volta para mim, a que me criou e a que me deu a luz, e eu preciso que você esteja lá. Fui, claro que fui. Era num pequeno jardim público, meia dúzia de pessoas.
Gabriela leu a carta que Rosa tinha escrito, plantou uma rosezeira em homenagem às duas mães e quando terminou e todo mundo começou a se dispersar, ela veio até mim e sussurrou. Eu sonhei com ela ontem, com a Elvira. Ela tava jovem, saudável, sem as marcas da doença. E ela me abraçou e pediu desculpa por ter guardado o segredo. E eu perdoei ela, Beatriz. Finalmente perdoei.
Abracei Gabriela, essa mulher que tinha sido forçada a reescrever toda sua história de identidade aos 43 anos, mas que tinha encontrado paz no processo. E quando voltei pro carro, olhei pro céu azul de Guadalupa e senti, não vi, mas senti, a presença de eu vir a uma última vez, como um vento quente acariciando meu rosto, como um sussurro sem palavras, dizendo: “Obrigada, agora eu posso ir.
” E ela foi, finalmente, completamente foi. Continuo trabalhando no Hospital Geral do Ins. Continuo vendo coisas que não deveria ver, ouvindo vozes que não deveriam existir, sentindo presenças que a ciência nega, mas o coração confirma. Héctor e eu criamos um protocolo informal.
Quando um de nós percebe que algum espírito está preso, tentamos descobrir o que ficou pendente, o que precisa ser resolvido e fazemos o possível para ajudar. Já ajudamos sete casos desde Elvira. Não falamos abertamente sobre isso porque, como Héctor disse, médico que vê fantasma vira piada. Mas fazemos o trabalho silenciosamente e a cada alma que ajudamos a seguir adiante, sentimos que estamos cumprindo o verdadeiro juramento de Hipócrates, aliviar sofrimento.
Não importa se o sofrimento é de corpo vivo ou de alma presa. Sofrimento é sofrimento e merece ser aliviado. Elvira me ensinou isso. Ela apareceu não para me assustar, mas para me recrutar. E hoje, seis meses depois daquele encontro impossível no elevador, entendo que alguns encontros não são acaso, são chamados.
E quando o mundo espiritual te chama, você tem duas escolhas: ignorar e viver com a dúvida eterna ou responder e descobrir que morte não é fim, é apenas mudança de endereço. E que amor, verdadeiro amor, encontra formas de atravessar qualquer porta, inclusive a que separa a vida de morte. Hospitais não são apenas lugares onde corpos são tratados, são também lugares onde almas fazem passagem.
Milhares de pessoas morrem em hospitais todos os anos e algumas presas por dor emocional, pendências não resolvidas, amores não ditos, segredos guardados, ficam não por maldade, por dor. Se você trabalha em hospital, clínica, casa de repouso, qualquer lugar onde morte a presença constante e sente arrepios inexplicáveis, vê sombras nos cantos, ouve passos em corredores vazios, não descarte como cansaço ou imaginação.
Pode ser real e pode ser alguém pedindo ajuda. Não tenha medo. Medo atrai espíritos em sofrimento. Tenha compaixão. Pergunte mentalmente o que precisam. Reze por eles. Acenda uma vela. peça que espíritos de luz venham buscá-los. E se descobrir uma pendência concreta, uma mensagem não entregue, um segredo não revelado, um perdão não pedido, cumpra, seja a ponte.
Porque às vezes a diferença entre uma alma presa e uma alma livre é uma pessoa viva com coragem suficiente para estender a mão e dizer: “Eu te ouço, eu te vejo e eu vou te ajudar a ir para casa”. E quando essa alma finalmente parte, o ar fica mais leve, o ambiente fica mais quente e você sente, não com olhos ou ouvidos, mas com o coração, que fez algo que transcende medicina, ciência, lógica. Você curou alguém, não o corpo, mas a alma.
E isso, no final é o que realmente importa. M.